Sócrates não deve contribuir para um ambiente
alarmista. Mas o seu prolongado optimismo tirou
credibilidade ao Governo
Por muitas limitações que tenha, o plano português
de combate à crise económica vai globalmente na
direcção certa. Igualmente me parece que o Governo
agiu bem, em geral, na resposta à crise financeira.
Mas estranho tanta demora a concretizar a promessa,
feita em Novembro, de o Estado (incluindo as
câmaras) pagar as dívidas em atraso. Isso, sim,
seria decisivo para aliviar a tesouraria de muitas
empresas.
O plano representa 1,25 por cento do PIB, um valor
considerável. No entanto, a perspectiva de uma
recessão em Portugal foi muitas vezes afastada pelo
primeiro-ministro. Então, como se justifica uma
intervenção estatal desta magnitude? No Bartoon de
Luís Afonso do passado dia 14 lia-se este diálogo: "
- O Governo anunciou um plano... para enfrentar a
crise em 2009. - Mas... 2009 não é o tal ano fixe,
em que, segundo o primeiro-ministro, vamos ter mais
rendimento disponível?".
Claro que o primeiro-ministro não deve contribuir
para um ambiente alarmista, que só iria piorar a
crise. E o ministro das Finanças tem mostrado
perceber a gravidade da situação. Mas o prolongado
optimismo de Sócrates tirou credibilidade ao
Governo. Na sexta-feira, Sócrates reconheceu que
2009 vai ser "o Cabo das Tormentas", mas a anterior
atitude acabou por ser contraproducente - o seu
irrealismo diminuiu a confiança das pessoas.
A crise financeira vem de Agosto de 2007, quando o
preço das casas começou a descer nos EUA, afectando
os empréstimos hipotecários de alto risco e os
produtos financeiros deles derivados. Em Setembro
deste ano a crise agudizou-se. Depois, o Lehman
Brothers faliu, lançando o pânico no sistema
financeiro mundial. Para evitar o colapso, a
administração republicana de Bush viu-se forçada à
mais dramática intervenção nos mercados desde a
Grande Depressão da década de 30. Incluindo a
nacionalização das duas grandes empresas
hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac e da maior
seguradora mundial, a AIG.
Em Outubro calculava-se que as bolsas tinham
perdido, em todo o mundo, perto de metade do seu
valor. Muitos dos novos e sofisticados produtos
financeiros revelaram--se, afinal, "tóxicos",
acarretando perdas descomunais, que teriam de se
reflectir na chamada economia real. Na Europa
faliram vários bancos. Entretanto, os preços das
casas desciam em pelo menos 23 países, entre os
quais Espanha, o principal cliente dos bens e
serviços portugueses, cuja economia entrou em queda
livre.
Pois, com este panorama - uma monumental perda de
valor em todo o mundo e a economia espanhola a
afundar -, a proposta de Orçamento de Estado
apresentada a 15 de Outubro previa a manutenção do
nível de desemprego em 2009 e um crescimento do PIB
de 0,8 por cento. O PSD discordava, apontando para
apenas 0,3 por cento. Alguns organismos
internacionais, com base em informação
desactualizada (numa altura em que as más notícias
se sucediam todos os dias, como continua a
acontecer), ainda faziam previsões pouco
catastróficas.
Espanta-me como era possível, há dois meses, ter a
mais leve dúvida de que 2009 seria um ano de
recessão em Portugal, país altamente endividado e
dependente do exterior. Disse-o na altura. Mas o
debate político-partidário, tanto do lado do Governo
e do PS, como do lado das oposições, continuou a
encarar a situação como apenas mais uma flutuação
cíclica e não uma inédita e gravíssima crise
económica e social.
Têm sido deprimentes os debates parlamentares sobre
a situação económica. Para além das habituais
picardias políticas e das demagogias sobre "salvar
os banqueiros", discutem-se décimas na evolução do
PIB, sem consciência de que o problema não está em
saber se vem aí, ou não, uma recessão económica, nem
em tornar, ou não, Sócrates "o primeiro-ministro da
recessão" (como se outro qualquer a pudesse evitar).
Não se deram conta de que o problema é saber se uma
inevitável recessão não resvalará para algo de mais
sério, uma depressão.
O facto de termos várias eleições no próximo ano
contribui para esta falta de qualidade no debate
público. Mas o motivo porventura principal para a
irrelevância daquilo que os políticos dizem sobre a
crise está na nossa situação periférica -
geográfica, mas sobretudo cultural. Por muito
integrados que estejamos na UE e por muito que as
tecnologias hajam reduzido as distâncias,
continuamos mentalmente periféricos. Só que hoje
tudo é global. Jornalista