Já não precisamos de recorrer ao crédito para nos
endividarmos Ana Rita Faria
As dificuldades financeiras chegaram à gestão do
dia-a-dia. Por detrás esconde-se o agravamento geral
das condições de vida
Não conseguem pagar as despesas domésticas, os
seguros, a creche ou a escola dos filhos, o
condomínio ou a renda da casa, a conta na farmácia
ou no supermercado do bairro. Não têm dívidas de
crédito à habitação, automóvel, pessoal ou de
qualquer outro tipo. São a nova classe de
sobreendividados. Enquanto isso, a "velha" classe -
a que tem dívidas de créditos - recorre cada vez
mais ao crédito pessoal, usa-o para resolver
dificuldades financeiras e continua a afundar-se no
incumprimento.
As conclusões são do estudo Um perfil dos
sobreendividados em Portugal, desenvolvido pelo
Observatório do Endividamento dos Consumidores (OEC)
em Coimbra e financiado pela Fundação para a Ciência
e Tecnologia. Com base numa análise de 2120
processos que chegaram à Associação de Defesa do
Consumidor (Deco) entre Janeiro de 2005 e Outubro de
2008, a investigação liderada pela jurista Catarina
Frade, 38 anos, constatou que não tem parado de
aumentar o número de pessoas que pedem ajuda à Deco
sem terem qualquer dívida de crédito.
Entre 2005 e 2008, o aumento foi de 19,1 por cento
em média, o que faz com que este fenómeno abranja
cerca de 400 pessoas entre os casos analisados. Nos
últimos anos, a tendência tem-se agravado e, em
2007, os pedidos de apoio por parte de pessoas sem
qualquer dívida de crédito duplicaram face ao ano
anterior.
"Não tenho dúvidas de que essas pessoas estão
sobreendividadas, na iminência de incumprimento, e
que apenas têm conseguido pagar as dívidas graças à
ajuda de familiares e amigos", garantiu ao PÚBLICO
Catarina Frade, docente da Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra que assina o estudo
juntamente com as psicólogas Cláudia Lopes, Fernanda
Jesus e Teresa Ferreira.
Para a investigadora, esta realidade evidencia um
agravamento geral das condições de vida, sobretudo
da classe média, que tem cada vez mais dificuldades
em cumprir pontualmente obrigações que habitualmente
não são pagas com recurso ao crédito. "A crise
chegou às famílias, que o sentem de forma mais
acentuada desde 2007", evidencia.
Para Catarina Frade, o aumento de pedidos de apoio
por parte de pessoas que não têm dívidas de crédito
mostra também que "há um problema social em
Portugal, onde se escondem necessariamente muitas
situações de pobreza". Pelas mãos da investigadora
passaram muitos casos de famílias cujo rendimento
mensal de todo o agregado estava abaixo dos 500
euros e que moravam em centros urbanos, "onde os
custos são maiores e a pressão do consumo também".
Crédito pessoal domina
Em menos de 20 anos, Portugal passou de uma taxa de
endividamento (medida em percentagem do rendimento
disponível) de pouco mais de 18 por cento, em 1990,
para uma taxa de 130 por cento em 2007, que é uma
das mais elevadas da União Europeia. Mas, se em
termos de endividamento geral da população são os
créditos à habitação e automóvel que ocupam a maior
fatia, para os sobreendividados que recorrem à Deco
o retrato é outro. Aí, o crédito mais frequente é o
pessoal e a tendência tem vindo a aumentar desde
2005. De acordo com o estudo, muitos desses créditos
pessoais são do tipo "crédito por telefone" ou
"crédito fácil". "O risco é por isso evidente", diz
Catarina Frade, "visto que são créditos com taxas de
juro muito elevadas (próximas de 30 por cento) e
facilmente acessíveis."
O maior peso do crédito pessoal surge em linha com a
alteração das próprias motivações que levam as
pessoas a contrair créditos. "Enquanto em estudos
anteriores concluímos que a procura de crédito se
destinava sobretudo à aquisição de bens essenciais
(como habitação e automóvel), agora esse motivo só
já aparece em segundo lugar entre os inquiridos",
revela Catarina Frade.
Os consumidores que actualmente recorrem à Deco
pedem crédito sobretudo para resolver dificuldades
financeiras, amiúde associadas à gestão corrente do
orçamento familiar. Mas há também cada vez mais
pessoas a pedirem crédito para pagar dívidas
anteriores. Para Catarina Frade, trata-se de um erro
e de uma conduta arriscada, pois "raramente o
recurso a um novo crédito consegue resolver uma
situação já deficitária à partida". Seja para pagar
dívidas ou para pagar as contas, o desfecho tende a
ser o mesmo: "o agravamento do multiendividamento e
da espiral de incumprimento".
Mais dívidas em atraso
De acordo com o estudo do OEC, o ano passado foi
aquele onde se notaram indícios mais fortes do
agravamento das condições da classe média nacional,
que parecem prolongar-se em 2008. Ao contrário dos
anos anteriores, quem recorreu à Deco em 2007
apresentava em média menos dívidas de crédito, mas
mais dívidas de crédito em atraso.
Ao nível do incumprimento, o crédito pessoal é o
mais atingido, uma tendência que abrange cerca de 26
por cento (quase 560 pessoas) dos mais de 2000 casos
analisados. O motivo mais apontado para não pagar as
dívidas é o desemprego, seguido da degradação das
condições de trabalho. Embora esta constatação
esteja aparentemente em contradição com o perfil dos
inquiridos (na sua maioria dizem estar empregados),
Catarina Frade realça que, na maioria dos casos, se
trata de desempregos anteriores, cujos efeitos
negativos só agora se fazem sentir.
Entre os principais motivos que levam ao não
pagamento das dívidas encontra-se também a má gestão
do orçamento familiar, um facto que é reconhecido
por alguns inquiridos, mas que é sobretudo destacado
pelos técnicos da Deco que os apoiam.
Os mais de 2000 casos de sobreendividados da Deco
(que são inferiores ao número de processos
efectivamente abertos pela associação em quatro
anos) chegaram à equipa de investigação de Catarina
Frade através de questionários feitos pela Deco nas
delegações de Lisboa, Viana do Castelo, Porto,
Coimbra, Santarém, Évora e Faro.
O excesso de endividamento está longe de ser apenas
um problema particular das pessoas afectadas. O
elevado montante de dívidas que os agentes
económicos acumularam na última década constitui
actualmente um dos principais entraves a uma
aceleração do crescimento de todo o país.
O problema começou a ganhar proporções preocupantes
a partir do momento em que, com a aproximação da
entrada no euro, as taxas de juro desceram para
valores a que os portugueses não estavam habituados.
O recurso ao crédito para compra de habitação e de
carro tornou-se possível para muitos agregados
familiares e as empresas passaram a ter maior
facilidade no financiamento dos seus investimentos.
Do lado do Estado, não se aproveitou a subida muito
rápida da receita fiscal para reduzir mais
rapidamente o défice.
O resultado é, agora, a necessidade de um período
longo de correcção, que está a forçar particulares,
empresas e Estado a poupar mais, contribuindo para o
ritmo lento de consumo e investimento.