A nova geração de alcoólicos tem 20, 30 anos Catarina Gomes
Jovens estão a beber mais cedo bebidas cada vez mais
poderosas. Às consultas começam a chegar casos de
cirrose hepática nestas idades
A O padrão de consumo de álcool mudou: nos últimos
anos começaram a chegar às consultas da
especialidade doentes alcoólicos na casa dos 20 a 30
anos, quando costumavam andar pelos 40 a 50 anos,
referem especialistas contactados pelo PÚBLICO.
Iniciações ao consumo cada vez mais precoces e
ingestão de bebidas de alto teor alcoólico em pouco
tempo contribuem para a antecipação do problema.
"O doente mais tradicional era aquele que começava a
beber vinho aos 12 anos e aos 40 a 50 anos adoecia",
refere Célia Franco, médica responsável pelo serviço
de adições do Centro Hospitalar Psiquiátrico de
Coimbra. "Agora começam a beber aos 14-15 anos mas
consomem bebidas muito graduadas", fazendo binge
drinking, um termo inglês que a Organização Mundial
de Saúde descreve como a ingestão excessiva de
quatro ou cinco bebidas de uma vez. Resultado?
"Adoecem aos 20 a 30 anos com alterações graves do
comportamento, agressividade e com doenças
psicóticas", resume a médica.
O vinho perdeu popularidade nestas faixas etárias,
face à cerveja e a bebidas destiladas como a vodka,
o uísque ou os shots (pequenas bebidas com alto teor
alcoólico que se bebem de um golo). São hábitos de
consumo cujo objectivo é "a alteração de
consciência", explica Célia Franco. "Adoecem mais
rapidamente porque as quantidades ingeridas em pouco
tempo são maiores e os danos mais graves",
acrescenta.
Sair à noite é igual a beber
Rui Tato Marinho, presidente da Associação
Portuguesa para o Estudo do Fígado, fala de casos de
cirrose hepática aos 30 anos, "alcoólicos puros" que
bebem uma garrafa de uísque por noite. Está provado
que o risco de dependência aumenta quase 50 por
cento se as bebedeiras começarem aos 13 anos,
alerta.
"Não tem graça sair sem beber", ouve a médica Fátima
Ismail da boca de alguns jovens. "Se eu não beber
sou o único que está sério. Fico à parte do grupo."
A coordenadora da consulta de alcoologia do Hospital
de Santa Maria, em Lisboa, fala de alcoolizações aos
12 e 13 anos - "a partir dos 25 a 27 anos já há
pessoas na consulta". Estes jovens alcoólicos
chegam-lhe com "alterações de comportamento, pânico,
convulsões, quadros depressivos". Em comum têm o
facto de surgirem "sem profissões estáveis, sem
família constituída".
Fátima Ismail teme que o número de doentes
alcoólicos continue a aumentar, porque "as gerações
mais novas bebem mais que as gerações anteriores" e
esse consumo é muitas vezes a porta de entrada para
a mistura com o haxixe ou outras substâncias
psicotrópicas. Por outro lado, "há uma tendência
para aumentar nas mulheres", que não toleram tanto o
álcool, nota a médica. "Com menos quantidades de
álcool atingem alcoolemias mais elevadas" e os
efeitos tóxicos são mais graves.
Morte aos 29 anos
Laura Leça, directora do Centro Regional de
Alcoologia do Norte, conta que os jovens que os
procuram a pedir a ajuda chegam por regra "quando a
situação já está avançada". A médica - que recebe
muitos na casa dos 20 e assistiu mesmo a um caso de
morte por cirrose hepática aos 29 anos - alerta para
consumos cada vez mais precoces, "em que as próprias
famílias não resistem à pressão de pré-adolescentes
que já insistem em ter as suas festas fora de casa".
O diagnóstico está traçado, mas a sociedade não
parece estar alertada para o problema, concordam os
especialistas. "Os pais têm que ser alertados",
sublinha Célia Franco, apontando para "a
permissividade com que os pais deixam sair os filhos
e embriagarem-se".
A médica diz que está provado que o aumento do preço
das bebidas e da idade mínima legal são eficazes na
diminuição do consumo e lembra que, legalmente, a
venda de álcool é proibida a menores de 16 anos, mas
"não há qualquer controlo na venda em
supermercados", por exemplo.
Laura Leça diz mesmo que é urgente subir a idade
mínima dos 16 para os 18 anos, notando que naquelas
idades "não há maturidade do fígado para metabolizar
o álcool". E lembra o tempo que se demorou a tomar
medidas contra o tabaco, quando a evidência
científica há muito alertava para os riscos para a
saúde.
Bebidas verdes
Vodka com chá verde, licor com frutas antioxidantes,
cerveja que mistura água natural, guaraná e extracto
de açafrão, ou enriquecida com vitamina B
(supostamente destinada a impedir a ressaca) ou com
sais minerais, embalagens 100 por cento recicláveis
e rótulos de papel de comércio justo. As estratégias
de marketing de bebidas alcoólicas estão em
constante mudança e têm um objectivo primordial:
associarem--se a estilos de vida saudáveis e
preocupações ambientais, diz o European Centre for
Monitoring Alcohol Marketing (EUCAM), um centro de
monitorização com sede na Holanda, num dos seus
últimos relatórios deste ano.
Bebidas rosa
Cerveja rosé ou com sabor a maçã, limão, lima e
framboesa, garrafas mais pequenas, packs com cinco a
dez em vez de seis ou 12, marcas que criam
embalagens com uma pequena pega que imita uma
malinha de mão de senhora. São algumas das novidades
nesta área que pretendem apelar ao sexo feminino,
diz o EUCAM. A ideia destas campanhas, assumem os
anunciantes, é, no caso da cerveja, despi-la das
ideias que a tornam menos atractiva para as
mulheres: o cheiro, o sabor e a ideia de que
engorda. Os anúncios saem em revistas femininas;
parte dos lucros reverte para campanhas como as de
rastreio do cancro da mama.
Bebidas com energia
As bebidas energéticas (normalmente com cafeína)
tiveram o seu boom na década de 1990. A sua mistura
com álcool nos últimos anos fez nascer novas marcas
de bebidas energéticas alcoólicas, em que se
misturam, por exemplo, com vodka e lima. O EUCAM
realça o perigo de o efeito estimulante destas
bebidas camuflar o nível de intoxicação pelo álcool.
A publicidade está centrada na Internet e estas
bebidas são muitas vezes oferecidas em festas e
outros eventos; as embalagens são coloridas e os
preços baixos. A mensagem veiculada centra-se no
facto de, supostamente, ajudarem os jovens a ficar
acordados e activos toda a noite. C.G.
Há algumas décadas havia uma clara distinção entre
hábitos de consumo de álcool nos países do Norte e
do Sul da Europa: nos primeiros bebia-se sobretudo
ao fim-de-semana e em grandes quantidades; nos
países mediterrânicos, o consumo era mais centrado
no vinho e era feito socialmente às refeições.
Hoje, entre os jovens, estas diferenças já quase não
se notam, explica ao PÚBLICO Ruth Ruiz, membro da
European Alcohol Policy Alliance (Eurocare), que
junta cerca de 50 organizações não governamentais e
associações em 20 países europeus com projectos na
área da prevenção do consumo de álcool.
Hoje pode falar-se daquilo que Ruth Ruiz designa
como "uma globalização das tendências na bebida". Os
jovens bebem da mesma forma na Dinamarca e no Reino
Unido, em Espanha ou na Itália. A primeira
experiência com o álcool acontece, em média, aos
12,5 anos, e a primeira embriaguez aos 14, refere. A
cerveja é a bebida mais consumida, seguida das
espirituosas e das alcopops (bebidas alcoólicas
açucaradas, com sabor a fruta e com uma percentagem
de álcool que pode variar entre os quatro e seis por
cento). Só depois vem o vinho.
"Os alcopops são uma forma de iniciação à bebida, os
sabores são doces", o que resulta mais nas
raparigas, que estão a beber cada vez mais. "O
consumo de álcool nos rapazes é alto mas está mais
estável do que nas raparigas, onde era baixo e está
a subir mais", refere Ruth Ruiz.
O patrocínio de eventos musicais e desportivos
também ajuda a passar "uma imagem positiva,
glamorosa e divertida do álcool", alerta a
responsável. Por outro lado, muita da regulamentação
em torno da publicidade ao álcool dirigida a menores
está centrada nos media tradicionais, nomeadamente a
televisão, quando para este público as empresas de
bebidas usam cada vez mais "os novos media", como a
Internet.
As bebidas consumidas têm altos teores de álcool, o
que significa que "há pessoas mais novas a buscar
tratamento". No Reino Unido - tal como em Portugal -
há relatos de médicos que encontram jovens com
cirrose na casa dos 30 anos, quando isso acontecia
por volta dos 40-45 anos.
Receitas para resolver o problema? Está provado que
o aumento do preço das bebidas, especialmente nestas
idades, é dos meios mais eficazes para diminuir o
consumo, até porque se constata que, em comparação
com 1980, o álcool custa hoje menos 69 por cento
tendo em conta diferentes indicadores de custo de
vida comparativos. "A existência de uma idade legal
mínima de consumo também é importante mas tem que
ser imposta", com fiscalizações às lojas para se ter
a certeza de que não vendem a menores, refere. C.G.
Oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um
minuto para a meia-noite. É hora de festejar.
Francisco tem oficialmente 16 anos e diz, de charuto
na boca, que "agora vai mudar tudo". A partir de
agora ele "vai poder beber, legalmente", e "vai
poder entrar nas discotecas, legalmente", completam
os quatro amigos que o acompanham nos charutos e no
festejo simultâneo do aniversário e do fim das
aulas, quinta-feira à noite, em Lisboa.
Não que a idade mínima legal tenha até agora sido um
impedimento para os quatro amigos, enfatizam com ar
orgulhoso, no meio de um aglomerado de jovens que
quase invadem a estrada, em frente ao café Boticas,
nas ruas do bairro de Santos.
Para comprar bebidas é só ir ao supermercado ou a um
café. Sai barato e nunca lhes perguntam a idade,
quer quando compram "litrosas" (garrafas de cerveja
de litro) ou bebidas como aquela garrafa de moscatel
que vão bebericando entre baforadas. Afinal, eles
consideram-se "rapazes ajuizados". Um deles conta
mesmo que apanhou "a primeira bebedeira dois meses
antes de fazer 16 anos".
É preciso ter connects
Bernardo foi mais precoce, embebedou-se aos 12 anos,
"mas foi diferente porque estava com o meu pai", que
trabalha com vinhos, é engenheiro agrónomo.
Estudantes de colégios privados, no topo dos
rankings, gabam-se das bebedeiras como das médias
nas escolas - 15, 16, 17 valores - e falam das suas
supostas capacidades académicas superiores. "Eu
tenho uma capacidade de oratória superior à média",
"quero ir para medicina, vou ser um oncologista do
caraças", "eu vou ser primeiro-ministro".
Bernardo tem 15 anos e entra sem problemas em
discotecas. Às vezes, dependendo dos sítios, é um
pouco mais complicado, mas há sempre formas de dar a
volta. O que é preciso "é ter connects". Cunhas?
"Não, connects", reforça o adolescente.
"No Garage [discoteca] só me deixavam entrar porque
tenho grande influência lá dentro", diz. Depois,
"somos sociais, conhecemos pessoas", falando neste
caso de raparigas, outra forma de entrar em
discotecas abaixo da idade mínima legal. "Nunca me
pedem o Bilhete de Identidade se entrar com
meninas."
As raparigas, essas sim, podem entrar em discotecas
"com dez anos", com os saltos altos e a maquilhagem
que, à noite, as envelhecem uns anos. Um dos jovens,
Martim, diz que ficou revoltado quando soube que "a
Miss ABS [discoteca] tinha 14 anos". "Eu não admito.
A idade legal são os 16 anos. Aos 15 anos chegaram a
não me deixar entrar porque não tinha contactos.
Elas entram e são privilegiadas", junta Martim.
Nuno, nome fictício, também tem opinião a dar sobre
o tema. Com uma idade "por volta dos 16 anos", pensa
que "a cultura portuguesa" leva os jovens ao álcool
"muito cedo". Como é rapaz "é natural", mas há
limites. Já "às raparigas que bebem de mais
fica-lhes mal", incorrem num "acto de labreguice".
"As raparigas têm tanto direito de se divertirem
como os rapazes", reivindica Madalena, adolescente
de 16 anos da Escola Secundária Maria Amália, em
Lisboa. E, reconhece, cabelo louro escorrido e ar
garoto, é tudo mais fácil para elas.
Começou a ir a discotecas aos 13, 14 anos. "Nunca me
pediram o Bilhete de Identidade". Para os porteiros,
diz, o critério de entrada, mais do que a idade,
passa por estar bem vestida, ter bom aspecto. "A
malta mais pequena", como se refere aos jovens com
12 anos, também entra, mas só "se conhecerem pessoal
ou se tiverem guest [o nome na lista de
convidados]". Madalena não acha mal. Para "a malta
pequena, não há idade para a pessoa se começar a
divertir".
O vinho está a perder popularidade nas faixas
etárias mais jovens, face à cerveja e a bebidas
destiladas como a vodka, o uísque ou os shots. São
hábitos de consumo cujo objectivo primordial é "a
alteração de consciência", segundo uma médica
especialista.
12,5
Na Europa, a primeira experiência com álcool dá-se,
em média, aos 12,5 anos. A primeira embriaguez
acontece aos 14