Público - 12 Dez 08

 

O caos e a ordem
José Miguel Júdice

 

Incapazes de entender os sinais dos tempos, as elites podem acordar num mundo diferente do que existia na véspera

 

Medina Carreira e João Talone. Tão diferentes nas características que os definem. Com idades, histórias pessoais, formações intelectuais e experiências profissionais que em nada coincidem. Um, paradigma de pessimismo (com lucidez magoada); o outro, paradigma de optimismo (ou não estaria a comprar empresas nesta conjuntura). E, no entanto, irmanados pelo acaso, dizendo ambos, qual Boyle e Mariotte, no mesmo dia, a mesma coisa: o que se está a passar na Grécia pode passar-se nos outros países europeus, como em Portugal.

 

E, comigo, vão três, pois com ambos concordo e, assim, procurarei ampliar o que dizem, neste pequeno canto onde um ou outro leitor generosamente deixa os olhos vogar de vez em quando.

 

Que seja possível uma ruptura sociocultural no nosso tempo parece evidente e não deve ser motivo de admiração. Afinal, desde que o mundo é mundo que isso vai acontecendo muitas vezes, sobretudo quando menos se esperava. Ainda há tão pouco, há 40 anos, de Berkeley a Praga, passando por Paris, as calçadas foram levadas ao rubro, e os "30 Gloriosos" acabaram em França, Nixon nos EUA, o comunismo na Europa Central e Obama chegou a Presidente. Como escreveu um dia Paul Hazard, a verdadeira revolução não ocorreu em 1789, mas antes quando os franceses que pensavam como Bossuet passaram a pensar como Voltaire. Depois foi apenas uma questão de tempo, do tempo inevitável com que se tece a História quando vista a partir do futuro ou olhando para o passado.

 

Também nada espanta que os poderosos, médios e grandes, não se apercebam. Intoxicados pela tranquilidade e pela inércia de uma convicção de progresso contínuo, habituados às suas sinecuras, treinados nas triviais alternâncias do "hoje governamos e amanhã governamo-nos", incapazes de entender os sinais dos tempos, as elites mais uma vez podem acordar num mundo diferente sem o terem percebido na véspera. Pois não foi Luís XVI que, no dia da tomada da Bastilha, escreveu no seu diário a trágica entrada "rien"?

 

O que parece preocupante é outra coisa: desta vez não se vê nenhum grupo social capaz de articular e estruturar as exigências, liderar os combates, federar o caos e organizar um novo paradigma. No final do século XVIII a burguesia dos salões soube fazer o Thermidor que, sangrento ou não como o que o antecedeu, era inevitável. Havia realmente uma classe dirigente em potência que o Ancien Régime não deixara expandir. E também foi assim na ruptura histórica do fim dos regimes soviéticos, como quando se esbarrondou o Estado Novo. Uma ruptura traz sempre o caos e a noite, liberta energias insuspeitadas e mexe com magmas profundos e lodos que pareciam calcificados. Mas logo a seguir uma normalização ocorre, que mata sonhos, mas autoriza vidas.

 

Desta vez, não, realmente. Talvez porque a democracia teve o mérito de integrar no sistema mesmo aqueles que se lhe opõem, talvez porque a extensão das classes médias como fogo em seara tivesse modificado pela primeira vez na História da humanidade a pirâmide social, dando-lhe uma barriga de estabilidade, talvez pelos mecanismos de segurança social e pela escolaridade ocupacional, talvez pela revolução de Internet e pelas sociedades em rede e desierarquizadas que produz, seja lá por que for para além ou em vez disto, o certo é que, raspando a anarquia, só se encontra mais anarquia.

 

Dir-se-á que a natureza, se não tem horror ao vazio, tem seguramente horror ao caos. Como lembrei este ano em Maio (e curiosamente não li ninguém que o tivesse escrito), o Maio de 68 terminou em 31 de Maio, com a manifestação que Malraux fez para De Gaulle. E o resultado eleitoral nas legislativas seguintes foi de tal modo a favor da direita, que me fez lembrar a descrição de Halevy sobre o que se passou a seguir à derrota da Comuna no início do que seria a III República, quando as eleições deram grande maioria aos monárquicos.

 

Pode ser, realmente, que uma velha ordem renasça da anarquia, aprendendo alguma coisa, interiorizando alguns medos, alterando o acessório para preservar o acidental, refrescando a classe dirigente e com isso encontrando a surpreendente energia que nos exércitos e na legislação de Napoleão bem patente ficou. Pode ser que a civilização vença o caos, como Asimov prognosticou na sua admirável trilogia Fundação. Pode ser, mas não consigo ver como.

 

Realmente, olhe para onde olhe, por esse mundo de Cristo, vejo anões políticos, cegos a conduzir cegos, pequenos e médios tiranetes, envelhecidos dirigentes (alguns deles velhos antes dos 40), falta de sentido de Estado, inexistência de uma paleta de valores, uma atmosfera de Baixo Império sem a grandeza histórica e cultural que a decadência tantas vezes trouxe à humanidade, flor que brota do meio do lixo.

 

Por isso temo pela civilização e acho tão irrelevante que o tema do momento sejam os deputados que se ausentam da Assembleia (mas ficariam a fazer o quê?), ou a dança entre a ministra da Educação e o líder sindical, ou mesmo a crise económica e financeira com todo o cortejo de sofrimentos que se sabe.

 

O problema é que das águas estagnadas e miasmáticas podem nascer tempestades. Não vai ser bonito de ver. Vai ser mau para viver. Quem por aqui estiver quando acontecer contará. E um dia, depois dos horrores do caos, a ordem que se implantará não será democrática, não será liberal, não será construída num sonho de justiça, ainda que pueril ou ilusório. A nova ordem será autoritária, securitária, injusta e repressiva. Será um monstro nascido de uma violação, disforme e ressentido. Advogado