Incapazes de entender os sinais dos tempos, as
elites podem acordar num mundo diferente do que
existia na véspera
Medina Carreira e João Talone. Tão diferentes nas
características que os definem. Com idades,
histórias pessoais, formações intelectuais e
experiências profissionais que em nada coincidem.
Um, paradigma de pessimismo (com lucidez magoada); o
outro, paradigma de optimismo (ou não estaria a
comprar empresas nesta conjuntura). E, no entanto,
irmanados pelo acaso, dizendo ambos, qual Boyle e
Mariotte, no mesmo dia, a mesma coisa: o que se está
a passar na Grécia pode passar-se nos outros países
europeus, como em Portugal.
E, comigo, vão três, pois com ambos concordo e,
assim, procurarei ampliar o que dizem, neste pequeno
canto onde um ou outro leitor generosamente deixa os
olhos vogar de vez em quando.
Que seja possível uma ruptura sociocultural no nosso
tempo parece evidente e não deve ser motivo de
admiração. Afinal, desde que o mundo é mundo que
isso vai acontecendo muitas vezes, sobretudo quando
menos se esperava. Ainda há tão pouco, há 40 anos,
de Berkeley a Praga, passando por Paris, as calçadas
foram levadas ao rubro, e os "30 Gloriosos" acabaram
em França, Nixon nos EUA, o comunismo na Europa
Central e Obama chegou a Presidente. Como escreveu
um dia Paul Hazard, a verdadeira revolução não
ocorreu em 1789, mas antes quando os franceses que
pensavam como Bossuet passaram a pensar como
Voltaire. Depois foi apenas uma questão de tempo, do
tempo inevitável com que se tece a História quando
vista a partir do futuro ou olhando para o passado.
Também nada espanta que os poderosos, médios e
grandes, não se apercebam. Intoxicados pela
tranquilidade e pela inércia de uma convicção de
progresso contínuo, habituados às suas sinecuras,
treinados nas triviais alternâncias do "hoje
governamos e amanhã governamo-nos", incapazes de
entender os sinais dos tempos, as elites mais uma
vez podem acordar num mundo diferente sem o terem
percebido na véspera. Pois não foi Luís XVI que, no
dia da tomada da Bastilha, escreveu no seu diário a
trágica entrada "rien"?
O que parece preocupante é outra coisa: desta vez
não se vê nenhum grupo social capaz de articular e
estruturar as exigências, liderar os combates,
federar o caos e organizar um novo paradigma. No
final do século XVIII a burguesia dos salões soube
fazer o Thermidor que, sangrento ou não como o que o
antecedeu, era inevitável. Havia realmente uma
classe dirigente em potência que o Ancien Régime não
deixara expandir. E também foi assim na ruptura
histórica do fim dos regimes soviéticos, como quando
se esbarrondou o Estado Novo. Uma ruptura traz
sempre o caos e a noite, liberta energias
insuspeitadas e mexe com magmas profundos e lodos
que pareciam calcificados. Mas logo a seguir uma
normalização ocorre, que mata sonhos, mas autoriza
vidas.
Desta vez, não, realmente. Talvez porque a
democracia teve o mérito de integrar no sistema
mesmo aqueles que se lhe opõem, talvez porque a
extensão das classes médias como fogo em seara
tivesse modificado pela primeira vez na História da
humanidade a pirâmide social, dando-lhe uma barriga
de estabilidade, talvez pelos mecanismos de
segurança social e pela escolaridade ocupacional,
talvez pela revolução de Internet e pelas sociedades
em rede e desierarquizadas que produz, seja lá por
que for para além ou em vez disto, o certo é que,
raspando a anarquia, só se encontra mais anarquia.
Dir-se-á que a natureza, se não tem horror ao vazio,
tem seguramente horror ao caos. Como lembrei este
ano em Maio (e curiosamente não li ninguém que o
tivesse escrito), o Maio de 68 terminou em 31 de
Maio, com a manifestação que Malraux fez para De
Gaulle. E o resultado eleitoral nas legislativas
seguintes foi de tal modo a favor da direita, que me
fez lembrar a descrição de Halevy sobre o que se
passou a seguir à derrota da Comuna no início do que
seria a III República, quando as eleições deram
grande maioria aos monárquicos.
Pode ser, realmente, que uma velha ordem renasça da
anarquia, aprendendo alguma coisa, interiorizando
alguns medos, alterando o acessório para preservar o
acidental, refrescando a classe dirigente e com isso
encontrando a surpreendente energia que nos
exércitos e na legislação de Napoleão bem patente
ficou. Pode ser que a civilização vença o caos, como
Asimov prognosticou na sua admirável trilogia
Fundação. Pode ser, mas não consigo ver como.
Realmente, olhe para onde olhe, por esse mundo de
Cristo, vejo anões políticos, cegos a conduzir
cegos, pequenos e médios tiranetes, envelhecidos
dirigentes (alguns deles velhos antes dos 40), falta
de sentido de Estado, inexistência de uma paleta de
valores, uma atmosfera de Baixo Império sem a
grandeza histórica e cultural que a decadência
tantas vezes trouxe à humanidade, flor que brota do
meio do lixo.
Por isso temo pela civilização e acho tão
irrelevante que o tema do momento sejam os deputados
que se ausentam da Assembleia (mas ficariam a fazer
o quê?), ou a dança entre a ministra da Educação e o
líder sindical, ou mesmo a crise económica e
financeira com todo o cortejo de sofrimentos que se
sabe.
O problema é que das águas estagnadas e miasmáticas
podem nascer tempestades. Não vai ser bonito de ver.
Vai ser mau para viver. Quem por aqui estiver quando
acontecer contará. E um dia, depois dos horrores do
caos, a ordem que se implantará não será
democrática, não será liberal, não será construída
num sonho de justiça, ainda que pueril ou ilusório.
A nova ordem será autoritária, securitária, injusta
e repressiva. Será um monstro nascido de uma
violação, disforme e ressentido. Advogado