No centro da cidade, um tesouro...
António Barreto Retrato da Semana
Está ali uma "janela de
oportunidade", um "desafio da modernidade". A Lisboa
competitiva ameaça passar por ali
Ainda não são aos bandos, mas há já
figuras sinistras que voam pelo Príncipe Real, pelas
ruas da Escola Politécnica, da Alegria e do Salitre,
pelos jardins da Faculdade de Ciências e pelo Jardim
Botânico, até ao Parque Mayer. Já há "interessados",
com muito dinheiro, que querem "desenvolver" a área,
"promover" a habitação, abrir escritórios de luxo,
criar unidades hoteleiras, centros comerciais e
zonas de lazer. Parece mesmo que certos edifícios do
Príncipe Real foram já adquiridos. Está ali, sem
dúvida, uma "janela de oportunidade", um "desafio da
modernidade" e uma "aposta na qualidade". A Lisboa
competitiva ameaça passar por ali.
O CONJUNTO ESTÁ IDENTIFICADO. JÁ FOI
A QUINTA do Monte Olivete e já pertenceu aos
Jesuítas. Já foi o Noviciado da Cotovia e o Colégio
dos Nobres. Já foi a Escola Politécnica e a
Faculdade de Ciências. Hoje alberga dois museus,
muitas relíquias e alguns pardieiros. É a antiga
Faculdade de Ciências, seus imóveis, anexos e
jardins, a que se acrescenta o Jardim Botânico.
Inclui alguns edifícios escolares, uns desactivados
desde o incêndio de 1978, outros depois disso.
Pertence à Universidade de Lisboa. São cerca de seis
hectares no centro da cidade. Espaço único que
qualquer capital civilizada aproveitaria e
mostraria, orgulhosa, aos seus cidadãos e ao mundo.
O INVENTÁRIO DO QUE ALI ESTÁ É
IMENSO. COM A ajuda da directora Ana Eiró e da
investigadora Marta Lourenço, pode resumir-se, por
defeito, no seguinte. Os Museus da Ciência e da
História Natural, que incluem o museu e laboratório
mineralógico e geológico, o museu, laboratório e
jardim botânico e o museu e laboratório zoológico e
antropológico. O Observatório Astronómico. A
Biblioteca científica dos séculos XV a XIX. Os
restos das instalações escolares do século XIX,
nomeadamente as salas, laboratórios e anfiteatros da
química, da física e da matemática. O Picadeiro Real
do Colégio dos Nobres (nascido em 1766), fabuloso
edifício, hoje transformado em pavilhão de
desportos. Os arquivos históricos de várias
instituições científicas.
O CONTEÚDO É IMPRESSIONANTE. SÃO COLECÇÕES notáveis
de instrumentos científicos e técnicos de química,
física, astronomia e matemática dos séculos XIX e XX
(mais de 10.000 peças). Arquivos históricos (mais de
100.000 documentos). Bibliotecas científicas dos
séculos XV a XX (25.000 livros). Mobiliário muito
curioso e interessante. Colecções de antropologia
(2000 esqueletos), de mamíferos (5000 espécies), de
aves (2600), de peixes (7000 lotes), de anfíbios e
répteis (1000), de invertebrados (30.000 lotes) e de
sementes (4000 lotes). A que se acrescentam os
herbários (250.000 espécies) dos séculos XVIII e
XIX, incluindo os de Vandelli, Brotero e Welwitsch.
Ou as colecções de mineralogia, petrologia,
estratigrafia e paleontologia (80.000 peças). E
finalmente o fantástico Jardim Botânico (1500
espécies), com mais de 150 anos de existência, sobre
o qual dou a palavra ao Senhor Félix Krull, criação
de Thomas Mann, que nos diz, nos anos cinquenta, a
propósito de Lisboa: "A sua primeira visita deverá
ser para o Jardim Botânico, sobre as colinas do
Oeste. Não tem igual na Europa inteira, graças a um
clima em que a flora tropical prospera tanto como a
da zona temperada. O jardim está cheio de
araucárias, de bambus, de papiros, de iúcas e de
todas as variedades de palmeiras. Aí verá com os
seus olhos plantas que, no fundo, já não pertencem à
actual vegetação do nosso planeta, mas a uma flora
mais antiga como, por exemplo, os fetos arbóreos. Vá
lá imediatamente e repare no feto arbóreo do período
carbónico. É mais do que uma pequena história
cultural. É toda a antiguidade da terra"!
A AMEAÇA DOS PROMOTORES NÃO É A
ÚNICA. A OUTRA é a da ruína e da degradação. É um
verdadeiro tesouro no meio da cidade, mais ou menos
ignorado, decadente, parcialmente abandonado, com
equipamentos degradados e espécies mal
conservadas... Os efeitos desta ameaça já se podem
observar à vista desarmada. Há instalações fechadas
porque perigosas. Há paredes degradadas e soalhos a
cair. Há salas e edifícios encerrados por razões de
segurança. Muitas colecções estão fechadas por falta
de condições de preservação ou de exibição. O Jardim
Botânico tem falta absoluta de jardineiros e
carência de verbas para tratamentos e manutenção,
não havendo sequer orçamento suficiente para pagar a
rega. Degradação e abandono são as palavras que vêm
ao espírito, apesar de uns bandos de alunos que
visitam os locais e mau grado alguns investigadores
e funcionários que se esforçam por manter aquilo
vivo. A Universidade não tem recursos para manter ou
desenvolver este património. O Governo diz, há
muitos anos, que também não tem. Da Câmara de
Lisboa, além de intenções vagas, pouco se sabe. Mas,
a seu favor, nota-se a abertura de um "concurso de
ideias" até ao próximo 4 de Janeiro.
NÃO HAVERÁ, EM LISBOA OU NO PAÍS,
INTELIGÊNCIA suficiente para preservar e aproveitar
este conjunto, utilizando-o para os fins óbvios,
como sejam o estudo, a investigação e a divulgação
cultural e científica, sem esquecer todas as funções
que pode preencher um espaço público único? Não
haverá ninguém que não se tenha ainda deixado
perverter pela cultura vigente do efémero, da espuma
virtual, do superficial e do divertimento? Não
haverá ninguém interessado em evitar novos
incêndios, inundações, delapidações ou promotores
imobiliários? Não haverá um ministro capaz de
perceber isto? Um Presidente da câmara? Um banco?
Uma companhia de seguros? Uma empresa? Uma fundação?
SEIS HECTARES E UM PATRIMÓNIO TÃO
RICO NO CENTRO da cidade! Numa cidade onde faltam os
espaços verdes; onde são poucos os espaços públicos
organizados e acessíveis; onde são raros os locais
de repouso e convívio; onde há poucos museus e
instituições de divulgação cultural e científica!
Nunca saberei exactamente o que mais leva ao
desperdício e à degradação. Já pensei que fosse a
pobreza. Depois, a ignorância. Agora, acrescento a
demagogia dos novos-ricos. Sociólogo