Abuso de poder corporativo ou abuso de poder
ministerial?
Luís Brito Correia
Não queremos que os nossos netos nos condenem pelo
holocausto dos fetos
O prof. Vital Moreira, conhecido defensor da
despenalização do aborto, veio defender, no PÚBLICO
de 20/11/2007, que os médicos que consideram
eticamente inaceitável a prática do aborto não podem
"impor oficialmente os seus padrões de ética
profissional aos demais profissionais que não
compartilham desses valores e não desejam deixar de
cumprir as suas obrigações profissionais"; que
"nenhuma ordem profissional pode considerar
infracção disciplinar a prática de actos
profissionais não só lícitos mas mesmo
profissionalmente devidos (salvo objecção de
consciência)"; que a recusa da Ordem dos Médicos a
adaptar o seu código deontológico à lei "é
inaceitável", é um "intolerável desafio à primazia
da lei e do Estado de direito", é um "abuso de poder
corporativo".
Com este discurso, esquece o ilustre
constitucionalista que a Constituição continua a
dispor que "a vida humana é inviolável" (art. 24.º).
Obviamente, a vida humana deve ser protegida desde
que existe vida humana. Há alguns (poucos) médicos
que dizem que têm dúvidas sobre se o embrião (até às
8 semanas) é um ser humano; mas nenhum médico
conseguiu provar que o ser resultante da fecundação
(ou concepção) não tem vida (como poderia, se as
células se multiplicam a uma velocidade espantosa?)
nem que esse ser vivo não é humano: como poderia, se
passadas poucas semanas o é, inequivocamente? Mudou
de natureza? Em que momento e porquê? Ou seja, todos
os médicos sabem, hoje, que o aborto equivale a
matar um ser humano.
E todos os médicos sabem, hoje, que a chamada
"interrupção voluntária da gravidez" causa,
frequentemente, sofrimentos à mulher: aumenta em 30%
o risco de cancro da mama, gera depressões,
disfunção sexual, esterilidade, tendência para
aborto espontâneo, etc. - males que os médicos têm o
dever de tratar e prevenir.
Esquece o ilustre constitucionalista que, no
referendo, se perguntava "Concorda com a
despenalização da interrupção voluntária da gravidez
(...)". Ou seja, pretendeu-se tornar não punível e,
portanto, lícito para a mulher (e, por arrastamento,
para o médico e a parteira) abortar voluntariamente.
Isso, pretendendo, alegadamente, acabar com o aborto
clandestino e defender a "dignidade" da mulher. Não
se perguntou se passaria a ser obrigatório para
todos os médicos fazer abortos voluntários (salvo
objecção de consciência - entre parênteses, como se
esta fosse rara...) nem para todos os contribuintes
pagá-los.
Esquece o ilustre constitucionalista que o resultado
do referendo de 2007 não foi juridicamente
vinculativo (porque votaram apenas 43,57% dos
eleitores, tendo votado "sim" apenas 25,8% dos
eleitores), embora seja politicamente relevante
(como foi o de 28/6/1998).
Nega o ilustre constitucionalista que, acima da lei
(aprovada pela maioria dos deputados ou pelos
governantes), há valores de justiça e de consciência
que merecem mais respeito do que as normas criadas
pelos homens. Com tal atitude, manifesta um
juspositivismo semelhante ao que esteve na origem do
holocausto nazi e dos gulags comunistas de tão má
memória. E declara uma intolerância que é tudo menos
democrática.
Aliás, o recurso para o Tribunal Constitucional de
impugnação da constitucionalidade da Lei n.º
16/2007, de 17/4, ainda não foi julgado.
Não é o código deontológico aprovado pela Ordem dos
Médicos (isto é, pela esmagadora maioria dos
profissionais) que é abusivo, mas a tentativa de
imposição ministerial de uma orientação ética que
fere profundamente a consciência e a dignidade da
maioria dos médicos.
Quando a lei é gravemente injusta, todos temos o
direito constitucional (art. 21.º) e natural de
resistência. Não queremos que os nossos netos nos
condenem pelo holocausto dos fetos, a que estamos a
assistir (e já lá vão mais de 3000, que Deus tenha
em descanso) - como, hoje, muitos condenam os nossos
pais e avós pelos males do fascismo e do comunismo.
Todos nós precisamos que os médicos nos tratem da
saúde, não que matem os nossos filhos.
Advogado e ex-mandatário da Plataforma Não Obrigada