Público - 24 Dez 06

 

NATAL 2006

a casa encantada João Bénard da Costa

 

1.Este Natal surgiu um imprevisto.
As minhas netas mais novas - a Vera de seis anos e a Leonor de oito - chegaram da escola bastante perturbadas. A professora - custa-me chamar-lhe assim, mas parece que é essa a profissão que lhe dá alimento - dissera-lhes que essas histórias de Natal, Pai Natal, presentes e Menino Jesus eram tudo tretas e que estavam em boa idade de deixar de acreditar nelas. As mães respectivas esforçaram-se a convencê-las que elas tinham percebido mal e que, em 2006, como em todos os Natais de que elas se lembram, o Menino Jesus voltaria a pôr-lhes nos sapatinhos os presentes que elas pedissem e merecessem. Ambas verificaram que foram vencedoras fáceis. Não pelos argumentos que usaram, não pela natural superioridade da palavra materna sobre a palavra escolar, mas porque elas queriam ser convencidas, porque elas não queriam outra coisa senão continuar a acreditar. Espero bem que este ano, talvez pela última vez, elas acreditem e que o Natal ainda seja para a Leonor e para a Vera aquele momento mágico em que tudo pode acontecer, porque se acredita que tudo pode acontecer.
Mas perguntei-me por que é que em três gerações (a minha, a dos meus filhos e a dos meus netos) era a primeira vez que a origem dos presentes de Natal não resultava de uma descoberta própria - mais ou menos dolorosa, mas própria -, mas fora denunciada por uma "professora", ou por alguém que ocupa essas funções, que se achava no direito - talvez no dever - de desmentir os pais e de entrar na esfera privada da vida das crianças que é suposto educar.
Ignoro se a professora tem convicções religiosas ou as não tem. Suponhamos, no segundo caso, que ela resolve um dia dizer às crianças que essa história de Deus é outra léria, e as exorta a não acreditar em nada. A hipótese, agora, já não me parece nada inverosímil.
Durante dois séculos (mais ou menos) ateus ou agnósticos de cepa rija protestaram contra uma escola confessional, ou contra um ensino público em que a catequese e a religião e moral eram disciplinas obrigatórias. Tinham inteira razão. Se os pais não querem educar os filhos religiosamente, ninguém se pode substituir a eles em tal vontade. Como conceber agora uma escola que funciona ao contrário, ou seja, em que se ensina a quem nasceu e cresceu numa família religiosa que o que lhe ensinaram em casa é falso ou idiota?
Bem sei que vai enorme distância entre o exemplo eventualmente hipotético que escolhi e o que se passou com as minhas netas. A chamada "professora" até pode ser crente e praticante e achar, como muitos crentes e praticantes acham, que não se deve misturar o Menino Jesus com presentes, ainda por cima fazendo-o protector dos ricos e castigador dos pobres. Mesmo que assim seja, o abuso continua-me a parecer idêntico. Porque ninguém tem o direito de se substituir aos pais em matérias destas e de tirar a virgindade às crianças só porque, por acaso, tem por profissão ensiná-las a ler, a escrever e a contar, coisas que, aliás, cada vez se ensinam pior.

2. Lembro-me muito bem do que se passou comigo. Aí pelos meus 8-9 anos, um colega da escola (para esta e outras coisas era sempre um colega da escola) disse-me qual Menino Jesus qual carapuça, eram os pais que me davam os presentes de Natal.
Estou a ver ainda a casa de jantar da minha Avó e o lugar em que se sentava a minha Mãe, quando eu lhe perguntei onde estava a verdade. Ela respondeu-me que efectivamente, etc., e, com palavras mais ou menos pedagógicas, confirmou-me as piores suspeitas. Não sei se foi nestes termos, mas a minha pergunta seguinte punha-a em causa: afinal ela mentia, ou afinal ela mentira. Explicou-me que não se tratava de mentira, mas de dar um bocado de magia a um momento mágico, ou qualquer coisa do género. Não fiquei lá muito convencido e o Natal seguinte foi triste. O céu já não era o limite, mas a bolsa dos meus pais. Sempre fora, mas eu não o sabia. Com o passar dos anos, algum ressentimento, se o houve, desapareceu por completo e esse momento, se foi marcante, não foi, de forma alguma, traumático.
Quando chegou a minha vez de ter filhos, não tive quaisquer dúvidas, logo que eles chegaram à idade dos Natais, em lhes contar as mesmas histórias que me tinham contado, como as tinham contado à minha mãe, como as tinham contado aos meus avós.
Mas já na altura (estou a falar dos anos 60 do século passado) entre os católicos "adultos" que procurávamos ser, houve brava discussão. Mentir ou não mentir não era só a questão, porque ela se misturava com o Natal e com o nascimento do Deus Menino. Alguns optaram por verdades nuas e cruas. Eu optei sempre pela absoluta ficção, rodeada de todos os efeitos especiais que a pudessem tornar mais inesquecível para as crianças. Ainda hoje, se eu fosse a contar...
Também eu, por quatro vezes (tantas como o número dos meus filhos), tive que enfrentar - às vezes foi a Mãe deles - a hora da verdade. Passou-se, sem tirar nem pôr, como se passou comigo. E todos, sem excepção, transmitiriam a mesma história aos meus netos e todos, sem excepção, já se viram confrontados com a "sessão de esclarecimento" sem traumas que constem.
Mais: à medida que havia uns que sabiam (os mais velhos) e outros que sabiam de maneira diferente (os mais novos), os primeiros juntavam-se aos pais no segredo a guardar. Conversas baixinhas, "ele ainda não sabe". Era bom "ser grande" como fora tão bom não o ser, que para nós, como para as frutas, há uma estação para tudo. Nenhum se esqueceu nunca de como era tão bom quando era tão mágico e até havia quem jurasse que vira ainda o pé do Menino Jesus, ou, mais tarde, que o paganismo avança a passos rápidos, as barbas do Pai Natal.
Pensem bem. Para quem acredita que, no dia de Natal, se celebra o momento em que o Verbo se fez Carne, o misteriozinho de uma chaminé e de uns presentes por ela abaixo tem alguma comum proporção com o Mistério da Encarnação? Até mesmo, segundo as narrações evangélicas, com a história da criança nascida em Belém, numa espécie de gruta ou coisa que o valha, porque não havia lugar em hospedarias e se aproximava a hora?
Dê-se a cada idade o mistério que a cada idade convém. E, em nome da verdade, não se tinja de um suposto real o que não cabe em nenhuma categoria de real.
Por isso, se eu nunca me atreveria a meter presépios e a frágil tradução do ouro, incenso e mirra em crianças cujos pais recusam em absoluto versões terrenas pintadas a céu, tenho toda a razão para me indignar quando adultos interferem com o que para mim é verdadeiro, em nome de uma suposta veracidade material.
A professora das minhas netas profanou uma inocência e interferiu onde não podia nem devia interferir. Meteu-se no meu Natal e esse direito nunca lho dei, nem nunca lho deram os pais das crianças. Ao que ela fez, entre muitas outras palavras feias, chama-se abuso de poder. Abuso de poder sobre uma criança é uma das piores coisas que se podem fazer.

3. Muito se tem escrito e dito sobre a paganização do Natal, o consumismo, etc., etc., e a conversa é por demais conhecida.
Mas estamos a assistir (a intervenção da senhora do colégio das minhas netas é só um exemplo mesquinho) a algo de muito pior do que a paganização de uma festa religiosa, que ainda era a homenagem que o vício prestava à virtude.
A própria palavra Natal está a ser progressivamente banida, em nome do respeito pelos que não nasceram nem cresceram com raízes cristãs. O ano passado - pela primeira vez na história dos Estados Unidos - o presidente Bush não desejou aos seus compatriotas "Happy Christmas", mas "seasons greetings". Em Inglaterra, o "politicamente correcto" agora é designar a quadra por "winterval". Como de lá nos vêm os exemplos, calculo, sem excessivo pessimismo, que dentro de dez anos qualquer termo com directa ou indirecta referência a Cristo ou à Natividade seja abolido ou se confine a esferas estritamente privadas. Simultaneamente, qualquer alusão menos respeitosa a crenças alheias será rigorosamente vigiada e punida. O que está em causa não é uma guerra contra a religião (como sucedeu, por exemplo, nos tempos da revolução francesa ou soviética), mas contra uma cultura, assumindo-se a nossa como a cultura culpada ou a cultura culposa. Se ela o foi, ou se ela o é, é a nossa cultura e a culpa sempre morre solteira. Ajoelhamos perante valores alheios e cuspimos nos nossos. Mais algum tempo, mais alguma abdicação e, quando olharmos para trás, crentes ou agnósticos, não ficou nada. Ficou o vazio. Outros o ocuparão. Para essa invertida colonização caminhamos a passos largos com alarve inconsciência. Não será bom de se ver e muito menos de se viver. Até lá, Bom Natal!

P.S. - Pela segunda vez, desde que estas crónicas são crónicas, me aconteceu pedir a lua e a lua já estar no céu.
Agora não é de Natais que falo, mas do meu apelo na crónica anterior a uma tradução portuguesa moderna das Metamorfoses de Ovídio. Um leitor atento preveniu-me que já há alguns meses a Nova Vega lançara, na colecção Bibliotecas Clássicas, o primeiro volume da citada obra, em tradução do original de Domingos Lucas. Edição bilingue. Felizmente, há quem vele por mim. Mais me velou quem correu e ma comprou. As minhas desculpas à editora e ao tradutor. E a minha grande alegria por ter finalmente, à mão de semear, essas Metamorfoses do meu estulto clamor. Espero pelo Volume II.