1.Este Natal surgiu um imprevisto.
As minhas netas mais novas - a Vera de seis anos e a
Leonor de oito - chegaram da escola bastante
perturbadas. A professora - custa-me chamar-lhe
assim, mas parece que é essa a profissão que lhe dá
alimento - dissera-lhes que essas histórias de
Natal, Pai Natal, presentes e Menino Jesus eram tudo
tretas e que estavam em boa idade de deixar de
acreditar nelas. As mães respectivas esforçaram-se a
convencê-las que elas tinham percebido mal e que, em
2006, como em todos os Natais de que elas se
lembram, o Menino Jesus voltaria a pôr-lhes nos
sapatinhos os presentes que elas pedissem e
merecessem. Ambas verificaram que foram vencedoras
fáceis. Não pelos argumentos que usaram, não pela
natural superioridade da palavra materna sobre a
palavra escolar, mas porque elas queriam ser
convencidas, porque elas não queriam outra coisa
senão continuar a acreditar. Espero bem que este
ano, talvez pela última vez, elas acreditem e que o
Natal ainda seja para a Leonor e para a Vera aquele
momento mágico em que tudo pode acontecer, porque se
acredita que tudo pode acontecer.
Mas perguntei-me por que é que em três gerações (a
minha, a dos meus filhos e a dos meus netos) era a
primeira vez que a origem dos presentes de Natal não
resultava de uma descoberta própria - mais ou menos
dolorosa, mas própria -, mas fora denunciada por uma
"professora", ou por alguém que ocupa essas funções,
que se achava no direito - talvez no dever - de
desmentir os pais e de entrar na esfera privada da
vida das crianças que é suposto educar.
Ignoro se a professora tem convicções religiosas ou
as não tem. Suponhamos, no segundo caso, que ela
resolve um dia dizer às crianças que essa história
de Deus é outra léria, e as exorta a não acreditar
em nada. A hipótese, agora, já não me parece nada
inverosímil.
Durante dois séculos (mais ou menos) ateus ou
agnósticos de cepa rija protestaram contra uma
escola confessional, ou contra um ensino público em
que a catequese e a religião e moral eram
disciplinas obrigatórias. Tinham inteira razão. Se
os pais não querem educar os filhos religiosamente,
ninguém se pode substituir a eles em tal vontade.
Como conceber agora uma escola que funciona ao
contrário, ou seja, em que se ensina a quem nasceu e
cresceu numa família religiosa que o que lhe
ensinaram em casa é falso ou idiota?
Bem sei que vai enorme distância entre o exemplo
eventualmente hipotético que escolhi e o que se
passou com as minhas netas. A chamada "professora"
até pode ser crente e praticante e achar, como
muitos crentes e praticantes acham, que não se deve
misturar o Menino Jesus com presentes, ainda por
cima fazendo-o protector dos ricos e castigador dos
pobres. Mesmo que assim seja, o abuso continua-me a
parecer idêntico. Porque ninguém tem o direito de se
substituir aos pais em matérias destas e de tirar a
virgindade às crianças só porque, por acaso, tem por
profissão ensiná-las a ler, a escrever e a contar,
coisas que, aliás, cada vez se ensinam pior.
2. Lembro-me muito bem do que se passou comigo. Aí
pelos meus 8-9 anos, um colega da escola (para esta
e outras coisas era sempre um colega da escola)
disse-me qual Menino Jesus qual carapuça, eram os
pais que me davam os presentes de Natal.
Estou a ver ainda a casa de jantar da minha Avó e o
lugar em que se sentava a minha Mãe, quando eu lhe
perguntei onde estava a verdade. Ela respondeu-me
que efectivamente, etc., e, com palavras mais ou
menos pedagógicas, confirmou-me as piores suspeitas.
Não sei se foi nestes termos, mas a minha pergunta
seguinte punha-a em causa: afinal ela mentia, ou
afinal ela mentira. Explicou-me que não se tratava
de mentira, mas de dar um bocado de magia a um
momento mágico, ou qualquer coisa do género. Não
fiquei lá muito convencido e o Natal seguinte foi
triste. O céu já não era o limite, mas a bolsa dos
meus pais. Sempre fora, mas eu não o sabia. Com o
passar dos anos, algum ressentimento, se o houve,
desapareceu por completo e esse momento, se foi
marcante, não foi, de forma alguma, traumático.
Quando chegou a minha vez de ter filhos, não tive
quaisquer dúvidas, logo que eles chegaram à idade
dos Natais, em lhes contar as mesmas histórias que
me tinham contado, como as tinham contado à minha
mãe, como as tinham contado aos meus avós.
Mas já na altura (estou a falar dos anos 60 do
século passado) entre os católicos "adultos" que
procurávamos ser, houve brava discussão. Mentir ou
não mentir não era só a questão, porque ela se
misturava com o Natal e com o nascimento do Deus
Menino. Alguns optaram por verdades nuas e cruas. Eu
optei sempre pela absoluta ficção, rodeada de todos
os efeitos especiais que a pudessem tornar mais
inesquecível para as crianças. Ainda hoje, se eu
fosse a contar...
Também eu, por quatro vezes (tantas como o número
dos meus filhos), tive que enfrentar - às vezes foi
a Mãe deles - a hora da verdade. Passou-se, sem
tirar nem pôr, como se passou comigo. E todos, sem
excepção, transmitiriam a mesma história aos meus
netos e todos, sem excepção, já se viram
confrontados com a "sessão de esclarecimento" sem
traumas que constem.
Mais: à medida que havia uns que sabiam (os mais
velhos) e outros que sabiam de maneira diferente (os
mais novos), os primeiros juntavam-se aos pais no
segredo a guardar. Conversas baixinhas, "ele ainda
não sabe". Era bom "ser grande" como fora tão bom
não o ser, que para nós, como para as frutas, há uma
estação para tudo. Nenhum se esqueceu nunca de como
era tão bom quando era tão mágico e até havia quem
jurasse que vira ainda o pé do Menino Jesus, ou,
mais tarde, que o paganismo avança a passos rápidos,
as barbas do Pai Natal.
Pensem bem. Para quem acredita que, no dia de Natal,
se celebra o momento em que o Verbo se fez Carne, o
misteriozinho de uma chaminé e de uns presentes por
ela abaixo tem alguma comum proporção com o Mistério
da Encarnação? Até mesmo, segundo as narrações
evangélicas, com a história da criança nascida em
Belém, numa espécie de gruta ou coisa que o valha,
porque não havia lugar em hospedarias e se
aproximava a hora?
Dê-se a cada idade o mistério que a cada idade
convém. E, em nome da verdade, não se tinja de um
suposto real o que não cabe em nenhuma categoria de
real.
Por isso, se eu nunca me atreveria a meter presépios
e a frágil tradução do ouro, incenso e mirra em
crianças cujos pais recusam em absoluto versões
terrenas pintadas a céu, tenho toda a razão para me
indignar quando adultos interferem com o que para
mim é verdadeiro, em nome de uma suposta veracidade
material.
A professora das minhas netas profanou uma inocência
e interferiu onde não podia nem devia interferir.
Meteu-se no meu Natal e esse direito nunca lho dei,
nem nunca lho deram os pais das crianças. Ao que ela
fez, entre muitas outras palavras feias, chama-se
abuso de poder. Abuso de poder sobre uma criança é
uma das piores coisas que se podem fazer.
3. Muito se tem escrito e dito sobre a paganização
do Natal, o consumismo, etc., etc., e a conversa é
por demais conhecida.
Mas estamos a assistir (a intervenção da senhora do
colégio das minhas netas é só um exemplo mesquinho)
a algo de muito pior do que a paganização de uma
festa religiosa, que ainda era a homenagem que o
vício prestava à virtude.
A própria palavra Natal está a ser progressivamente
banida, em nome do respeito pelos que não nasceram
nem cresceram com raízes cristãs. O ano passado -
pela primeira vez na história dos Estados Unidos - o
presidente Bush não desejou aos seus compatriotas
"Happy Christmas", mas "seasons greetings". Em
Inglaterra, o "politicamente correcto" agora é
designar a quadra por "winterval". Como de lá nos
vêm os exemplos, calculo, sem excessivo pessimismo,
que dentro de dez anos qualquer termo com directa ou
indirecta referência a Cristo ou à Natividade seja
abolido ou se confine a esferas estritamente
privadas. Simultaneamente, qualquer alusão menos
respeitosa a crenças alheias será rigorosamente
vigiada e punida. O que está em causa não é uma
guerra contra a religião (como sucedeu, por exemplo,
nos tempos da revolução francesa ou soviética), mas
contra uma cultura, assumindo-se a nossa como a
cultura culpada ou a cultura culposa. Se ela o foi,
ou se ela o é, é a nossa cultura e a culpa sempre
morre solteira. Ajoelhamos perante valores alheios e
cuspimos nos nossos. Mais algum tempo, mais alguma
abdicação e, quando olharmos para trás, crentes ou
agnósticos, não ficou nada. Ficou o vazio. Outros o
ocuparão. Para essa invertida colonização caminhamos
a passos largos com alarve inconsciência. Não será
bom de se ver e muito menos de se viver. Até lá, Bom
Natal!
P.S. - Pela segunda vez, desde que estas crónicas
são crónicas, me aconteceu pedir a lua e a lua já
estar no céu.
Agora não é de Natais que falo, mas do meu apelo na
crónica anterior a uma tradução portuguesa moderna
das Metamorfoses de Ovídio. Um leitor atento
preveniu-me que já há alguns meses a Nova Vega
lançara, na colecção Bibliotecas Clássicas, o
primeiro volume da citada obra, em tradução do
original de Domingos Lucas. Edição bilingue.
Felizmente, há quem vele por mim. Mais me velou quem
correu e ma comprou. As minhas desculpas à editora e
ao tradutor. E a minha grande alegria por ter
finalmente, à mão de semear, essas Metamorfoses do
meu estulto clamor. Espero pelo Volume II.