Público - 22 Dez 06

 

Natal e hipocrisia

Nuno Pacheco

 

A rejeição de símbolos natalícios a pretexto de ofender os "não-crentes" é um exemplo de hipocrisia que pode tornar-se perigoso no futuro

 

Voltamos ao mesmo, de forma igualmente infeliz: os europeus que se assanharam contra a ostentação de símbolos religiosos em sociedades laicas (sejam eles crucifixos ou véus) descobriram no Natal um novo alvo. Dois exemplos espanhóis: numa escola de Saragoça, cancelou-se a festa natalícia para não ofender "crianças não-cristãs"; em Málaga, a pretexto de não serem permitidos símbolos religiosos na escola pública de um país laico, a directora de um colégio deitou para o lixo um presépio feito pelos alunos da aula de... Religião (estranho como não deitou fora, também, os próprios alunos e a professora de uma aula não-laica). À semelhança de Espanha, também em Inglaterra o Natal se tornou incómodo: três em cada quatro empresários consultados num inquérito afirmaram que proibiriam decorações alusivas à época; outros substituíram "Feliz Natal" por "Boas Festas"; e em Birmingham a câmara decidiu mudar Christmas (Natal) para Winterval (intervalo de Inverno). O argumento para todas estas aberrantes proibições, até agora inéditas, é o mesmo que foi usado em Chicago, há dias, para não projectar numa feira natalícia o filme O Nascimento de Cristo: ninguém quer correr o risco de ofender os "não-cristãos". Esqueceram-se, claro, de ouvir os "não-cristãos". E os que já falaram estão atónitos perante tais actos. E estão também preocupados. Se hoje se ocultam os símbolos ou as histórias associadas ao nascimento de Cristo também amanhã lhes poderão proibir, sob idêntico pretexto de laicidade, as suas próprias celebrações religiosas. Não exactamente proibir, mas ocultar, excluir, tornar clandestinas. Quase criminosas.
Jack Straw, ministro britânico dos Assuntos Parlamentares, encontrou o termo exacto para classificar tais exercícios de autocensura: uma "parvoíce politicamente correcta". E também será politicamente perigosa. Porque em lugar de fomentar o diálogo entre religiões e culturas prefere reduzi-lo ao silêncio, ignorando que é na assunção e aceitação pública das diferenças (culturais, religiosas, sexuais) que se devem construir as sociedades de hoje e do futuro. O recalcamento, a ocultação, o medo, a culpa, são resquícios medievais que na Europa ainda sobrevivem à custa de uma ignorância arvorada em conhecimento, de um atraso cultural mascarado de civilização. O presépio, mesmo na mais laica das escolas, deveria servir para aproximar as crianças através do conhecimento das histórias e crenças que invoca, das observações de tradições que nele se revêem e não revêem, do respeito pelas diferenças. Deitá-lo para o lixo é semear, nas trevas da ignorância, o ódio. É preferível ver um cristão ou muçulmano ostentando claramente os seus símbolos, mas respeitando-os mutuamente, do que seres que gerem tais crenças na penumbra e, por elas, sejam capazes de humilhar ou matar. A Europa precisa de cidadãos livres: nos seus hábitos, nas suas tradições, nas suas crenças. Não precisa de autómatos falsamente iguais, prontos a passar sem mácula nos códigos de barras de uma civilização que se pretende impoluta mas é ferozmente hipócrita. Crentes e laicos devem, pois, defender a liberdade das suas opiniões e símbolos, sem medo ou vergonha de os fazerem públicos - porque só no respeito das suas diferenças se refrearão os piores antagonismos.