Expresso - 16 Dez 06

O óbvio ululante
João Pereira Coutinho

 

Seria interessante perguntar aos paladinos das dez semanas o que tencionam eles fazer quando aos tribunais portugueses começarem a chegar as mulheres das onze, das doze ou das treze semanas

Os portugueses preparam-se para votar no referendo sobre o aborto e já existem números para esgrimir. Números que, dizem os especialistas, pecam apenas por defeito. Acredito. Mas saber que, de acordo com um estudo recente, mulheres em idade fértil já praticaram 350 mil abortos não deixa de ser o retrato de um certo atraso civilizacional. Sobretudo se tivermos em conta que a prática não se limita ao cenário-cliché de mãe pobre, analfabeta, abandonada pelo parceiro e enxotada para o clássico vão de escada. Só em 2005, foram 18 mil abortos, sem escolher classe, estado civil ou formação académica. Confrontado com estes números, a atitude mais sensata talvez fosse perguntar em que planeta vivem as mulheres (e os homens) do meu país, incapazes de entender a história básica das flores e das abelhas. Mas o tempo não aconselha moralismos e os sábios afirmam que os números provam outra coisa: estivesse já em vigor a lei das dez semanas e 72% dos abortos seriam legais.

Não vale a pena contestar a lógica, até porque a discussão do aborto é uma discussão ética, e não lógica. Mas, para ficarmos pelos números, se é verdade que 72% dos abortos seriam feitos dentro da lei, 28% continuariam a ser praticados fora dela. Lembrar o óbvio é, no fundo, lembrar dois factos. Primeiro, que a aprovação da lei não irá terminar com mulheres julgadas pela prática, ao contrário do que afirma a propaganda da causa. E seria interessante perguntar aos paladinos das dez semanas o que tencionam eles fazer quando aos tribunais portugueses começarem a chegar as mulheres das onze, das doze ou das treze semanas. Em segundo lugar, que a preocupação exclusiva em despenalizar impediu uma conversa mais séria: a aplicação efectiva de uma lei que já existe. Uma lei que serve para a modelar Espanha. Mas que não serve para um primitivo Portugal.

A fachada

Eu sou um incurável romântico, com certo gosto por ruínas e nostalgias. Mas posso sugerir um edifício em falta para o concurso caseiro das Sete Maravilhas? Escolha pessoal: aos oito ou nove anos, guiado por mão paterna, conhecia as chamadas Obras do Fidalgo, um gigantesco solar do século XVIII que, literalmente, é só fachada: de fora, contemplamos a riqueza e a desmesura da decoração e das proporções. E quando entramos pela porta principal, vemos que as salas não existem; nem escadaria; nem paredes; existe apenas floresta. Um filme surreal. Mais tarde, assombrado pela fachada do fidalgo de Vila Boa de Quires (eis o nome da terra, a uns quilómetros do Porto), dei por mim a ler o funesto destino dele: chamava-se António de Vasconcelos Carvalho e Meneses e pretendia um palácio capaz de rivalizar com os grandes do mundo. Contrataram-se os melhores artífices. Fizeram-se planos de exuberante «rocaille». Infelizmente, o fidalgo não era dado a contas - e a fortuna foi integralmente consumida na fachada, porque pela fachada se começavam (e, no caso do fidalgo, se terminavam) as grandes obras. Consta que D. António morreu, como lhe competia, num barraco e na miséria.

Que a história oficial tenha esquecido o fidalgo, eu entendo; mas, se me permitem a heresia, eu não troco a megalomania e o fracasso desta obra pelo pacote turístico tradicional.