Seria interessante perguntar aos paladinos das dez
semanas o que tencionam eles fazer quando aos
tribunais portugueses começarem a chegar as mulheres
das onze, das doze ou das treze semanas
Os portugueses preparam-se para votar no referendo
sobre o aborto e já existem números para esgrimir.
Números que, dizem os especialistas, pecam apenas
por defeito. Acredito. Mas saber que, de acordo com
um estudo recente, mulheres em idade fértil já
praticaram 350 mil abortos não deixa de ser o
retrato de um certo atraso civilizacional. Sobretudo
se tivermos em conta que a prática não se limita ao
cenário-cliché de mãe pobre, analfabeta, abandonada
pelo parceiro e enxotada para o clássico vão de
escada. Só em 2005, foram 18 mil abortos, sem
escolher classe, estado civil ou formação académica.
Confrontado com estes números, a atitude mais
sensata talvez fosse perguntar em que planeta vivem
as mulheres (e os homens) do meu país, incapazes de
entender a história básica das flores e das abelhas.
Mas o tempo não aconselha moralismos e os sábios
afirmam que os números provam outra coisa: estivesse
já em vigor a lei das dez semanas e 72% dos abortos
seriam legais.
Não vale a pena contestar a lógica, até porque a
discussão do aborto é uma discussão ética, e não
lógica. Mas, para ficarmos pelos números, se é
verdade que 72% dos abortos seriam feitos dentro da
lei, 28% continuariam a ser praticados fora dela.
Lembrar o óbvio é, no fundo, lembrar dois factos.
Primeiro, que a aprovação da lei não irá terminar
com mulheres julgadas pela prática, ao contrário do
que afirma a propaganda da causa. E seria
interessante perguntar aos paladinos das dez semanas
o que tencionam eles fazer quando aos tribunais
portugueses começarem a chegar as mulheres das onze,
das doze ou das treze semanas. Em segundo lugar, que
a preocupação exclusiva em despenalizar impediu uma
conversa mais séria: a aplicação efectiva de uma lei
que já existe. Uma lei que serve para a modelar
Espanha. Mas que não serve para um primitivo
Portugal.
A fachada
Eu sou um incurável romântico, com certo gosto por
ruínas e nostalgias. Mas posso sugerir um edifício
em falta para o concurso caseiro das Sete
Maravilhas? Escolha pessoal: aos oito ou nove anos,
guiado por mão paterna, conhecia as chamadas Obras
do Fidalgo, um gigantesco solar do século XVIII que,
literalmente, é só fachada: de fora, contemplamos a
riqueza e a desmesura da decoração e das proporções.
E quando entramos pela porta principal, vemos que as
salas não existem; nem escadaria; nem paredes;
existe apenas floresta. Um filme surreal. Mais
tarde, assombrado pela fachada do fidalgo de Vila
Boa de Quires (eis o nome da terra, a uns
quilómetros do Porto), dei por mim a ler o funesto
destino dele: chamava-se António de Vasconcelos
Carvalho e Meneses e pretendia um palácio capaz de
rivalizar com os grandes do mundo. Contrataram-se os
melhores artífices. Fizeram-se planos de exuberante
«rocaille». Infelizmente, o fidalgo não era dado a
contas - e a fortuna foi integralmente consumida na
fachada, porque pela fachada se começavam (e, no
caso do fidalgo, se terminavam) as grandes obras.
Consta que D. António morreu, como lhe competia, num
barraco e na miséria.
Que a história oficial tenha esquecido o fidalgo, eu
entendo; mas, se me permitem a heresia, eu não troco
a megalomania e o fracasso desta obra pelo pacote
turístico tradicional.