Diário de Notícias -
11
Dez 06
A longa epopeia
dos direitos humanos
João César das Neves
Por decisão soberana das nossas autoridades iremos
nos próximos meses acumular às nossas muitas
preocupações a discussão da questão do aborto.
Trata-se de um tema polémico em que a sociedade está
dolorosamente dividida, com razões fortes dos dois
lados. Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar que esta
discussão de valores básicos e vitais constitui uma
longa tradição na civilização moderna. Embora neste
caso com duas diferenças importantes.
Os últimos séculos do mundo ocidental incluem uma
sequência de debates deste tipo. Há 200 anos
discutiam-se os privilégios da nobreza e a igualdade
perante a lei; há 150 lutava-se contra a escravatura
e a pena de morte; há 100 anos debatiam-se os
direitos das mulheres e a democracia; há 50 a
igualdade das minorias étnicas, dos judeus aos
negros. Muitas vezes estes assuntos arrastaram-se,
pelo que todas as gerações recentes se encontraram
divididas por temas fundamentais. A discussão do
aborto e outras conexas - eutanásia, droga,
casamento, família - toma hoje o lugar de velhas
lutas.
Não faltam os que, precisamente por isso, consideram
o combate pela liberalização do aborto como o
próximo passo na longa e majestosa epopeia de
afirmação dos direitos individuais. Esses consideram
os que se lhe opõem como relíquias obscurantistas e
retrógradas que serão pulverizadas pela simples
passagem do tempo. Mas a realidade é precisamente a
inversa.
Os termos da discussão são claros. De um lado temos
os que defendem um princípio fundamental. Antes era
a igualdade de todos os cidadãos, o direito à vida
dos condenados ou à liberdade dos escravos. Hoje é o
direito à vida do embrião. Confrontando esta posição
simples e fundamental, o outro lado apresenta uma
enorme quantidade de interesses particulares. Os
antigos absolutistas, esclavagistas, racistas e
totalitários diziam proteger velhas tradições e
privilégios, benefícios económicos concretos,
vantagens comunitárias específicas. Contra esses, a
luta pelos direitos fundamentais sempre se baseou na
tese de que a conveniência sócio-económica de alguns
não podia justificar a angústia, escravização ou
morte de outras pessoas. Foi sempre assim que se
combateu a opressão e discriminação.
Hoje, do mesmo modo, alguns invocam a conveniência
sócio-económica para liberalizar o aborto. Esses
falam de múltiplos temas e aspectos, dos julgamentos
de mulheres às práticas clandestinas, passando pela
desigualdade social. Têm razão em muito do que
dizem. Mas contra eles está apenas a superioridade
do direito fundamental à vida. Os abortistas, ao
negarem o igual estatuto humano ao embrião, fazem
precisamente o mesmo que os antigos racistas e
esclavagistas faziam às suas vítimas. Pelo contrário
quem defende a vida dos mais fracos, daqueles que
não se podem defender nem têm voz na sociedade, são
os que querem manter a proibição do aborto.
Existem, porém, duas enormes diferenças neste debate
que merecem destaque. A primeira é que desta vez a
discussão pretende ser feita por vias legais.
Antigamente o combate pela liberdade e igualdade
desenrolava-se na sociedade, mas a luta pelo aborto
parece fazer-se pela convocação de um referendo.
Todos fingem que uma votação vai decidir a questão.
Depois, como se viu há oito anos, nada fica
resolvido, porque o problema não é regulamentar, é
humano. Mas as autoridades insistem na mesma via,
convencidas ingenuamente de que assim se arruma o
caso.
A segunda diferença é que antigamente quem lutava
pelos direitos básicos desafiava a lei estabelecida.
Eram os códigos milenares que estabeleciam os
interesses da aristocracia, a abjecção dos escravos,
a humilhação da mulher e das minorias étnicas. E foi
a luta social que mudou esses pergaminhos. Mas,
desta vez, a lei nacional prescreve há muito tempo o
direito à vida de cada ser humano desde a sua
concepção. Assim, a defesa do direito fundamental
faz-se dentro do quadro legal, e são os que o querem
atacar, por razões de conveniência sócio-económica,
que desejam alterar a lei.
Este último ponto é muito significativo. Ele mostra
como, ao contrário do que se afirma, este confronto
não representa um passo na majestosa luta pela
afirmação dos direitos individuais. O que está em
causa não é alargar os direitos, mas reduzi-los.
Liberalizar o aborto, mesmo por razões
compreensíveis, destrói sempre um valor muito
superior. A luta é pois para evitar um primeiro
recuo na trajectória civilizacional dos direitos
humanos.