Público- 04 Dez 06

MICROCRÉDITO "Pensámos logo que se não arriscássemos..."

Desde 1999 que os micronegócios apoiados pela Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC) e pelos bancos envolvidos geraram mais de mil empregos e um financiamento global da ordem dos cinco milhões de euros, metade do qual concedido este ano. Um instrumento essencial das politicas de desenvolvimento. Por Cristina Ferreira

São os excluídos do sistema financeiro. Muitos nem vivem em condições de miséria extrema, mas em qualquer momento podem cair nela. São imigrantes. Uma faixa recente e crescente de novos clientes de microcrédito.

"O imigrante que deu certo"
"Eu sou dos imigrantes que deu certo. O facto de ser brasileiro não atrapalhou nada." Começa por dizer Paulo Alves, de 31 anos, que está literalmente na estrada a desenvolver o seu micro projecto. "O meu trabalho é ir ao domicílio tirar mossa sem danificar a pintura." Desloca-se numa carrinha, onde guarda o equipamento necessário à tarefa que vai desempenhar. É claro que Paulo sabe "vender" o seu negócio: "Sai mais barato que na oficina." O serviço pode ser feito à porta do emprego, ou à porta de casa do cliente. Não importa o local, nota. Basta telefonar e ir ao site da empresa Tira Mossas.
O brasileiro chegou a Lisboa em 2000. Faz a viagem normal de um imigrante: sem amparo. Como acontece com a maioria dos que cá chegam, aterrou sozinho. Sem conhecer alguém. Sem ter família. Não trazia com ele um número de telefone. De início, segundo conta, não tinha um objectivo preciso quanto ao futuro. Apenas estava disposto a alcançar uma vida melhor. Começou por trabalhar numa empresa representante da Opel como pintor de automóveis. Amealhou algum dinheiro e mandou vir a mulher e as filhas. Um dia idealizou lançar um negócio. Tinha apenas uma ideia. Mas "não tive acesso ao crédito convencional, apesar de ter conta aberta num banco", explica Paulo. Sem o capital necessário, não avançou. Tomou conhecimento pela internet da Associação Nacional de Direito ao Crédito (ANDC) e procurou-a. "Não tinha visto de residência e não pude apresentar o meu plano."
Voltou a tentar e desenvencilhou-se. Até 2010 pagará ao banco uma prestação mensal de cerca 460 euros. Hoje, refere, "estou a fazer um curso de gestão e de administração de empresas na Fundação Gulbenkian [que paga a formação]". O brasileiro opera na Grande Lisboa e já se expandiu para o Porto, onde está uma semana por mês. "Já não consigo atender todos os clientes." Era bom que houvesse "concorrência", desafia. Tem um colaborador que foi buscar ao seu antigo patrão. E em 2007 quer empregar mais dois.

"Era muito duro"
Andriy Mazurenko chegou a Lisboa em 2000. Tinha 23 anos. E à semelhança de outros imigrantes entrou numa vida de andarilho, quase nómada. Foi servente nas obras, carpinteiro. A jornada prolongava-se por 12 horas, folgava ao domingo. A sua presença é de uma pessoa resoluta. Um ano depois decidiu iniciar o processo de legalização e abandonar a construção. Fez um contrato com uma empresa de serviço temporário, tratou do visto e da segurança social. De dia trabalhava numa unidade de logística, a ganhar menos 200 euros do que nas obras, mas a pagar IRS. À noite trabalhava para conseguir poupar e mandar vir da Ucrânia a família. Vitória chega em 2003 e ingressa numa unidade de empacotamento. "Era muito duro", dizem. Como tantos, descobrem que não foram moldados para a vida que encontraram. E sentem-se levados a atalhar caminho. Tentam obter financiamento bancário, mas sem sucesso. Um dia tomam conhecimento da existência de microcrédito através de um jornal para imigrantes de Leste. "Pensámos logo que se não arriscássemos...", nota Andriy. Receberam cinco mil euros, verba que será paga em três anos. Em Maio abriram em Mem Martins um mini, muito Mini Mercado Russo. Há de tudo em pequenas quantidades: iogurtes, vinhos, enchidos, doces, sumos, chocolates, revistas, jornais, livros, matrioskas, filmes. Na zona " vivem muitos romenos, moldavos, ucranianos e russos" e a loja "é um ponto de encontro", explica Vitória. O alarme toca: "Tudo o que fazemos é a pensar no nosso filho, que é o nosso melhor investimento.". Os dois falam com finura, mas não escondem a inquietude. O rapaz estuda na Escola São Pedro de Santarém e ao sábado na escola ucraniana. Vitória sente-se vulnerável e quer trazer a mãe a Portugal. Em 2005 chegou a irmã. A adaptação ao português é uma dificuldade que procuram ultrapassar "para se integrarem". Querem manter-se em Portugal, e quem sabe, talvez um dia montar um restaurante de comida ucraniana. Mais tarde até gostavam de comprar casa.

"Lá [na Ucrânia] estuda-se mais"
São 11h00. Olga Ohyshchuk está sentada a uma pequena secretária na sua loja de aluguer de vestuário de cerimónia, que é o mesmo que dizer de fraques, smokings, vestidos de noiva e acessórios. A Ilon foi inaugurada em Outubro. Ela é uma típica ucraniana, olhos claros, tom de pele branco rosado. Mas está longe de ser glacial. A sua história tem outros contornos.
Chegou a Portugal em 1998. No seu país deixou um negócio, o mesmo que agora se propõe desenvolver em Portugal. Na Ucrânia "todos se casam com fatos alugados". Olga lembra que, com a separação da Rússia, "em apenas uma noite todos ficámos pobres e já ninguém se casava". Aí decidiu partir com o marido. Em 1999 a irmã, Iryna, e o cunhado, seguiram-na. Trabalharam as duas num restaurante, fizeram a apanha de tomate, foram empregadas de limpeza. O desencanto é compreensível e coincide com um momento que se vai revelar crucial. "Um dia líamos um jornal de língua russa, quando vimos uma reportagem sobre microcrédito." Foi quanto bastou para procurarem informações. Olga decide lançar-se como pequena empresária. A vivacidade com que fala não disfarça o nervosismo. Foi "a primeira vez" que entrou num banco para pedir financiamento. E observa que "as duas [irmãs] emprestamos dinheiro uma à outra". Iryna adianta que "na nossa terra poupamos para viver". Também ela solicitou 15 mil euros. Tinha até fiadores, mas a falta de "papéis" travou o financiamento. Disposta a tudo, mandou vir dinheiro da Ucrânia para adquirirem "os fatos para alugar".
De certo modo, Olga reconciliou-se com a sua condição de excluída do sistema. "Se não o tivesse feito, "não teria conseguido iniciar o negócio" pois a abertura da loja "exigiu muito dinheiro de uma só vez". Um fraque custa 650 euros e um vestido de noiva entre 400 e 800 euros. Utilizam a internet para fazerem publicidade. Novembro "foi melhor do que Outubro", porque "agora há as festas de fim do ano".
Lá fora a temperatura ronda os 15 graus. No interior da loja, Olga mantém vestido o casaco forrado a pele. Na adaptação a Portugal o que foi mais difícil? "A dureza do trabalho pouco qualificado." E, bom, suportar "o frio" dentro de casa. "Na Ucrânia tudo está aquecido." O futuro? Por agora não pensam partir. O tom que imprimem às palavras denota aflição. Correr riscos tem sempre um preço. Olga tem duas filhas, e só a mais nova está em Lisboa. Tanto pode regressar, como ficar. Iryna não vê a filha há oito anos. Dizem:"Lá estuda-se mais" e "cá começa-se a trabalhar mais cedo".