Não se esqueçam do prego!
Graça Franco
Era uma das melhores escolas comunais públicas de Bruxelas com prestígio q.b,
preservado com zelo por Monsieur le Directeur. Uma figura digna dos livros de
colégios ingleses. Era ele que tinha a última palavra na selecção dos
professores e dos alunos e, nesse papel, me entrevistava com a sua proverbial
cara de poucos amigos, para aquilatar da possibilidade de vir a receber as
minhas duas crianças, candidatas à frequência da primeira e segunda classe da
chamada Maternel. Corria o ano de 1999. Tinham eles dois e três anos.
A escola chamava-se "Paradis des Enfants" numa curiosa contradição com a sua
assumida laicidade. Foi por aí, aliás, que Monsieur começou. E a recente
polémica "dos crucifixos" fez-me recordar aquela primeira conversa. O discurso
foi mais ou menos assim: esta é uma escola pública laica e conservadora!
Educamos as nossas crianças no respeito pela disciplina e no reconhecimento da
autoridade e conservamos uma reserva de autonomia pedagógica que nos permite não
aplicar, de imediato, todas as reformas centralmente anunciadas pelo Ministério!
Em Portugal isto soava um bocadinho démodé mas nas democracias consolidadas é
este o discurso da moda!.
E prosseguia: impomos desde muito cedo hábitos de trabalho e um respeito apurado
pelos direitos próprios e dos outros, de forma a favorecer o despertar para os
valores da cidadania activa. No discurso de Monsieur as palavras cidadãos e
cidadania surgiam mais vezes do que nos textos de Manuel Alegre. Notei que fugia
à trilogia clássica da Revolução Francesa e omitia qualquer referência à
"fraternidade". Estimulamos cedo a autonomia, fomentamos o amor à verdade, à
solidariedade e à generosidade. Pareceu-me bem. Não fora a laicidade (uma
espécie de único defeito...) apeteceu-me aplaudir.
Monsieur continuava, não fora esquecer-se de tocar todos os pontos importantes:
isso passa também por incutir o respeito pelo próprio espaço escolar. Por um
grande cuidado com os materiais, pela ordem, e pela limpeza de salas e recreios
e pelo aluno não dever vir vestido de qualquer maneira. Não temos uniformes, mas
não toleramos, por exemplo, "gorros e bonés" excepto nos recreios para proteger
do sol e do frio. Os fatos de treino e o calçado de ginástica só serão
permitidos para as actividades desportivas.
As crianças devem vestir-se de acordo com os seus gostos, com bom senso e sem
atitudes provocatórias (foi a expressão usada para se referir a qualquer coisa
que entendi como "decoro") mas o seu porte deve ser sempre limpo e "impecável" (
curioso adjectivo para quem reivindicara a laicidade de base). Estamos
razoavelmente atentos a esses pormenores, avisou. O homem insistia no ponto como
se quisesse acentuar o cariz "castrador" da criatividade juvenil (a escola
leccionava até ao nono ou décimo ano) não fosse eu, mais tarde, vir a
reivindicar, em próxima assembleia de pais, o direito da pequenada a vestir como
entendesse, ao abrigo da inexistência de uniforme próprio. Imaginam Monsieur a
tolerar beijoquices nos recreios???
Acho que foi por esta altura do discurso que o consegui interromper pela
primeira vez. Os meus filhos estavam habituados às fardas do colégio católico
que os irmãos frequentavam em Portugal. Lembrei, para tentar provar que não
seria por aí que lhe trariam problemas...
À palavra católico notei algum desconforto. Sabe que aqui há colégios católicos
onde o ensino é igualmente gratuito? O Estado assegura a gratuitidade da
educação quer pública quer privada. Só nas actividades extra e na alimentação há
uma pequena diferença "para mais" na escola privada. Acho que Monsieur temia que
eu fosse levada a pensar que a escola laica era a única alternativa que restava
aos "pobres" crentes.
Como cá, percebem? Sem que isso cause nenhum engulho ao laicistas de serviço que
arrumam a questão das duas liberdades (religiosa e de educação
constitucionalmente protegidas) no facto do Estado laico tolerar a escola
confessional, permitindo assim aos ricos que estes possam escolher pagar
colégios católicos privados (desde que obviamente não se furtem a sustentar
também com os ditos impostos o funcionamento da escola laica).
E os pobres? Esses o Estado escolhe por eles a laicidade e já vão com muita
sorte. Monsieur, pelo contrário, estava mesmo preocupado com o meu direito a uma
educação livre: se preferir tem o Notre Dame des Graces a três minutos de
automóvel... Insistiu, não fosse não ter percebido bem... Eu preferia uma escola
no perímetro das viagens pedrestres e nesse as católicas já não tinham vagas.
Naquele caso bastava-me atravessar duas ruas. Insisti que tinha excelentes
referências da escola e a laicidade não me incomodava. Redobraria o afã
formativo no espaço da família. Para ele, semelhante postura só era mesmo
possível num estrangeiro, mas não voltou a falar na questão.
Admitidas as crianças a sua catolicidade só voltou a vir à baila em duas
esporádicas ocasiões. A primeira numa reunião de pais onde se procedeu ao
banimento do velhinho da Coca Cola porque dava pelo nome de Pai Natal. Expliquei
que o dito não tinha nada a ver com o menino Jesus mas, a maioria achou mais
prudente mantê-lo à distância.
O S. Nicolau continuou a ser a única excepção tolerada. O bom homem, símbolo da
caridade com os mais pobres, lá pôde, no dia respectivo, distribuir presentes.
Em contrapartida, a laicidade extrema dava nisto: um mês inteirinho a estudar
bruxas e bruxedos à pala do americaníssimo Hallowe"en...
A questão religiosa só voltou à baila na sequência do 11 de Setembro. Alguns
pais manifestaram, então, à educadora, o desagrado pelo tema ter sido tratado na
escola. Gente a atirar-se das janelas levantava a questão da morte. Tema tabu!
As crianças perguntavam o que acontecia depois? E algumas tinham tido a ousadia
de responder que " morriam e iam para o Céu". Os pais reclamavam que a questão
da morte não fosse jamais abordada porque as respostas podiam ser múltiplas e
deviam ser dadas em casa. Como jornalista opus-me a uma escola que passasse à
margem da vida.
As minhas crianças viveram os dois anos previstos no prometido "paraíso" de
sucesso escolar. O exemplo parece-me suficiente para provar que uma escola
pública laica pode servir lindamente e até ser escolhida, por um católico
praticante e militante, sem nenhuma reserva mental. Desde que seja boa.
Dito isto, para me situar no campo do debate sobre a liberdade de educação e a
laicidade do Estado que corre à margem da polémica dos "crucifixos", faço notar
que o Estado belga assegura não só a efectiva liberdade religiosa como a
efectiva liberdade de educação no respeito profundo pela verdadeira laicidade do
Estado. Exactamente o que não se faz por cá. Em que o Estado continua a recusar
entregar à escola da minha preferência o dinheiro dos meus impostos e que gasta
com a educação dos meus próprios filhos (pelo menos com os três que estão
actualmente na escola pública). A verdade é que me faz pagar duas vezes a
educação dos dois que continuam na escola privada (e lá permanecerão até à minha
falência total...).
Pudessem os católicos escolher as suas escolas e a questão dos crucifixos
deixaria de fazer sentido. Claro que há a questão do modelo civilizacional, o
respeito pela nossa história e os valores ocidentais mas, nada que justificasse
tantos rios de tinta. A mim, devo confessar, custa-me sobretudo não saber o que
farão ao prego os burocas zeladores da laicidade. Imagino Cristo a descer da
cruz e a ser substituído de imediato pela foto do Dr. Cavaco. Nos outros dois
velhos pregos do antigo regime, Sócrates ocupará o prego de Salazar. E o prego
livre? Agora em sobra? Imaginam o risco do pressuroso buroca da República o
preencher com a foto do autarca local, apontado como modelo de virtudes
republicanas às criancinhas? A foto da Dra. Fátima em Felgueiras ou do Dr.
Isaltino em Oeiras... No despacho não se podia acrescentar que tirassem também o
prego?! Jornalista