Público - 12 Dez 05

Não se esqueçam do prego!

Graça Franco

 

Era uma das melhores escolas comunais públicas de Bruxelas com prestígio q.b, preservado com zelo por Monsieur le Directeur. Uma figura digna dos livros de colégios ingleses. Era ele que tinha a última palavra na selecção dos professores e dos alunos e, nesse papel, me entrevistava com a sua proverbial cara de poucos amigos, para aquilatar da possibilidade de vir a receber as minhas duas crianças, candidatas à frequência da primeira e segunda classe da chamada Maternel. Corria o ano de 1999. Tinham eles dois e três anos.
A escola chamava-se "Paradis des Enfants" numa curiosa contradição com a sua assumida laicidade. Foi por aí, aliás, que Monsieur começou. E a recente polémica "dos crucifixos" fez-me recordar aquela primeira conversa. O discurso foi mais ou menos assim: esta é uma escola pública laica e conservadora! Educamos as nossas crianças no respeito pela disciplina e no reconhecimento da autoridade e conservamos uma reserva de autonomia pedagógica que nos permite não aplicar, de imediato, todas as reformas centralmente anunciadas pelo Ministério! Em Portugal isto soava um bocadinho démodé mas nas democracias consolidadas é este o discurso da moda!.
E prosseguia: impomos desde muito cedo hábitos de trabalho e um respeito apurado pelos direitos próprios e dos outros, de forma a favorecer o despertar para os valores da cidadania activa. No discurso de Monsieur as palavras cidadãos e cidadania surgiam mais vezes do que nos textos de Manuel Alegre. Notei que fugia à trilogia clássica da Revolução Francesa e omitia qualquer referência à "fraternidade". Estimulamos cedo a autonomia, fomentamos o amor à verdade, à solidariedade e à generosidade. Pareceu-me bem. Não fora a laicidade (uma espécie de único defeito...) apeteceu-me aplaudir.
Monsieur continuava, não fora esquecer-se de tocar todos os pontos importantes: isso passa também por incutir o respeito pelo próprio espaço escolar. Por um grande cuidado com os materiais, pela ordem, e pela limpeza de salas e recreios e pelo aluno não dever vir vestido de qualquer maneira. Não temos uniformes, mas não toleramos, por exemplo, "gorros e bonés" excepto nos recreios para proteger do sol e do frio. Os fatos de treino e o calçado de ginástica só serão permitidos para as actividades desportivas.
As crianças devem vestir-se de acordo com os seus gostos, com bom senso e sem atitudes provocatórias (foi a expressão usada para se referir a qualquer coisa que entendi como "decoro") mas o seu porte deve ser sempre limpo e "impecável" ( curioso adjectivo para quem reivindicara a laicidade de base). Estamos razoavelmente atentos a esses pormenores, avisou. O homem insistia no ponto como se quisesse acentuar o cariz "castrador" da criatividade juvenil (a escola leccionava até ao nono ou décimo ano) não fosse eu, mais tarde, vir a reivindicar, em próxima assembleia de pais, o direito da pequenada a vestir como entendesse, ao abrigo da inexistência de uniforme próprio. Imaginam Monsieur a tolerar beijoquices nos recreios???
Acho que foi por esta altura do discurso que o consegui interromper pela primeira vez. Os meus filhos estavam habituados às fardas do colégio católico que os irmãos frequentavam em Portugal. Lembrei, para tentar provar que não seria por aí que lhe trariam problemas...
À palavra católico notei algum desconforto. Sabe que aqui há colégios católicos onde o ensino é igualmente gratuito? O Estado assegura a gratuitidade da educação quer pública quer privada. Só nas actividades extra e na alimentação há uma pequena diferença "para mais" na escola privada. Acho que Monsieur temia que eu fosse levada a pensar que a escola laica era a única alternativa que restava aos "pobres" crentes.
Como cá, percebem? Sem que isso cause nenhum engulho ao laicistas de serviço que arrumam a questão das duas liberdades (religiosa e de educação constitucionalmente protegidas) no facto do Estado laico tolerar a escola confessional, permitindo assim aos ricos que estes possam escolher pagar colégios católicos privados (desde que obviamente não se furtem a sustentar também com os ditos impostos o funcionamento da escola laica).
E os pobres? Esses o Estado escolhe por eles a laicidade e já vão com muita sorte. Monsieur, pelo contrário, estava mesmo preocupado com o meu direito a uma educação livre: se preferir tem o Notre Dame des Graces a três minutos de automóvel... Insistiu, não fosse não ter percebido bem... Eu preferia uma escola no perímetro das viagens pedrestres e nesse as católicas já não tinham vagas. Naquele caso bastava-me atravessar duas ruas. Insisti que tinha excelentes referências da escola e a laicidade não me incomodava. Redobraria o afã formativo no espaço da família. Para ele, semelhante postura só era mesmo possível num estrangeiro, mas não voltou a falar na questão.
Admitidas as crianças a sua catolicidade só voltou a vir à baila em duas esporádicas ocasiões. A primeira numa reunião de pais onde se procedeu ao banimento do velhinho da Coca Cola porque dava pelo nome de Pai Natal. Expliquei que o dito não tinha nada a ver com o menino Jesus mas, a maioria achou mais prudente mantê-lo à distância.
O S. Nicolau continuou a ser a única excepção tolerada. O bom homem, símbolo da caridade com os mais pobres, lá pôde, no dia respectivo, distribuir presentes. Em contrapartida, a laicidade extrema dava nisto: um mês inteirinho a estudar bruxas e bruxedos à pala do americaníssimo Hallowe"en...
A questão religiosa só voltou à baila na sequência do 11 de Setembro. Alguns pais manifestaram, então, à educadora, o desagrado pelo tema ter sido tratado na escola. Gente a atirar-se das janelas levantava a questão da morte. Tema tabu! As crianças perguntavam o que acontecia depois? E algumas tinham tido a ousadia de responder que " morriam e iam para o Céu". Os pais reclamavam que a questão da morte não fosse jamais abordada porque as respostas podiam ser múltiplas e deviam ser dadas em casa. Como jornalista opus-me a uma escola que passasse à margem da vida.
As minhas crianças viveram os dois anos previstos no prometido "paraíso" de sucesso escolar. O exemplo parece-me suficiente para provar que uma escola pública laica pode servir lindamente e até ser escolhida, por um católico praticante e militante, sem nenhuma reserva mental. Desde que seja boa.
Dito isto, para me situar no campo do debate sobre a liberdade de educação e a laicidade do Estado que corre à margem da polémica dos "crucifixos", faço notar que o Estado belga assegura não só a efectiva liberdade religiosa como a efectiva liberdade de educação no respeito profundo pela verdadeira laicidade do Estado. Exactamente o que não se faz por cá. Em que o Estado continua a recusar entregar à escola da minha preferência o dinheiro dos meus impostos e que gasta com a educação dos meus próprios filhos (pelo menos com os três que estão actualmente na escola pública). A verdade é que me faz pagar duas vezes a educação dos dois que continuam na escola privada (e lá permanecerão até à minha falência total...).
Pudessem os católicos escolher as suas escolas e a questão dos crucifixos deixaria de fazer sentido. Claro que há a questão do modelo civilizacional, o respeito pela nossa história e os valores ocidentais mas, nada que justificasse tantos rios de tinta. A mim, devo confessar, custa-me sobretudo não saber o que farão ao prego os burocas zeladores da laicidade. Imagino Cristo a descer da cruz e a ser substituído de imediato pela foto do Dr. Cavaco. Nos outros dois velhos pregos do antigo regime, Sócrates ocupará o prego de Salazar. E o prego livre? Agora em sobra? Imaginam o risco do pressuroso buroca da República o preencher com a foto do autarca local, apontado como modelo de virtudes republicanas às criancinhas? A foto da Dra. Fátima em Felgueiras ou do Dr. Isaltino em Oeiras... No despacho não se podia acrescentar que tirassem também o prego?! Jornalista

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