Estado e religião: as duas tradições
editorial José Manuel Fernandes
A França celebrou por estes dias o centenário da sua celebrada "lei da laicidade".
Os políticos, prudentemente, abstiveram-se, mas os militantes da causa
multiplicaram colóquios e iniciativas. Neles se celebrou aquilo que muitos
intelectuais franceses consideram ainda hoje uma das frases legais mais "belas"
de todo o seu edifício jurídico: "A República assegura a liberdade de
consciência". É assim que começa o primeiro artigo da lei de 1905, que logo
acrescenta: "Ela garante o livre exercício dos cultos de acordo com as únicas
restrições a seguir estabelecidas no interesse da ordem pública". O segundo
artigo acrescenta, para reforçar o primeiro, que "a República não reconhece
nenhum culto".
Esta construção legal contrasta com a de um outro texto legal, muito mais antigo
(começou a ser discutido em 1789, ano do início da Revolução Francesa, e foi
aprovado no ano seguinte): a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos.
Nela se estabelece que "o Congresso não fará nenhuma lei que diga respeito ao
estabelecimento de uma religião, nem proibindo o livro exercício daquela".
Todo um mundo separa estas duas formulações, aparentemente parecidas. A
formulação francesa, ao afirmar a liberdade pela positiva e ao encarregar o
Estado (a "República") de a garantir, é tipicamente filojacobina. A formulação
americana, ao garantir a liberdade impedindo o Estado de a limitar, inspira-se
antes na tradição dos primeiros imigrantes, que fugiam às perseguições
religiosas na Europa e conheceram a liberdade religiosa antes de conhecerem a
liberdade política.
Não é, neste caso, sequer necessário citar Isaiah Berlin, que tão bem reflectiu
sobre a maior eficácia das formulações "negativas" da liberdade, para perceber
que a tradição americana garante melhor os direitos dos crentes e dos não
crentes, assim como a separação do Estado e das Igrejas, do que a formulação
francesa. Basta reparar que a lei de 1905 considera que, para "assegurar a
liberdade de consciência", é logo necessário impor restrições ao livre exercício
dos cultos em nome da "ordem pública", isto é, estabelece exactamente o
contrário da referida primeira emenda, que proíbe qualquer interferência do
Estado naquilo que é do domínio das consciências. Ao acrescentar que "não
reconhece qualquer culto", a lei francesa não só reforça esta componente como se
desenvolve numa base que deixa de ser neutral perante os diferentes cultos,
antes encarando-os com desconfiança.
Assistimos assim ao desenvolvimento de uma ideia, tendencialmente iliberal, que
apenas concebe a laicidade não como neutralidade do Estado perante cultos que
reconhece e estima na sua variedade, mas como oposição do Estado à presença de
qualquer culto nos espaços públicos, remetendo-os em exclusivo para a esfera
privada. Mais: aquilo que é a definição de uma característica dos Estados - há
Estados laicos tal como há Estados confessionais -, acabou a ser assumido por
indivíduos como sendo credo próprio. Porém, não se pode ser laico tal como não
se pode ser confessional: é-se sim ateu, agnóstico ou crente. A não ser que se
tome a laicidade como uma outra forma de religião, caminho perigoso pois
redundaria numa nova religião de Estado, logo em novas intolerâncias.