Público - 11 Dez 05

Estado e religião: as duas tradições

editorial José Manuel Fernandes

 

A França celebrou por estes dias o centenário da sua celebrada "lei da laicidade". Os políticos, prudentemente, abstiveram-se, mas os militantes da causa multiplicaram colóquios e iniciativas. Neles se celebrou aquilo que muitos intelectuais franceses consideram ainda hoje uma das frases legais mais "belas" de todo o seu edifício jurídico: "A República assegura a liberdade de consciência". É assim que começa o primeiro artigo da lei de 1905, que logo acrescenta: "Ela garante o livre exercício dos cultos de acordo com as únicas restrições a seguir estabelecidas no interesse da ordem pública". O segundo artigo acrescenta, para reforçar o primeiro, que "a República não reconhece nenhum culto".
Esta construção legal contrasta com a de um outro texto legal, muito mais antigo (começou a ser discutido em 1789, ano do início da Revolução Francesa, e foi aprovado no ano seguinte): a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos. Nela se estabelece que "o Congresso não fará nenhuma lei que diga respeito ao estabelecimento de uma religião, nem proibindo o livro exercício daquela".
Todo um mundo separa estas duas formulações, aparentemente parecidas. A formulação francesa, ao afirmar a liberdade pela positiva e ao encarregar o Estado (a "República") de a garantir, é tipicamente filojacobina. A formulação americana, ao garantir a liberdade impedindo o Estado de a limitar, inspira-se antes na tradição dos primeiros imigrantes, que fugiam às perseguições religiosas na Europa e conheceram a liberdade religiosa antes de conhecerem a liberdade política.
Não é, neste caso, sequer necessário citar Isaiah Berlin, que tão bem reflectiu sobre a maior eficácia das formulações "negativas" da liberdade, para perceber que a tradição americana garante melhor os direitos dos crentes e dos não crentes, assim como a separação do Estado e das Igrejas, do que a formulação francesa. Basta reparar que a lei de 1905 considera que, para "assegurar a liberdade de consciência", é logo necessário impor restrições ao livre exercício dos cultos em nome da "ordem pública", isto é, estabelece exactamente o contrário da referida primeira emenda, que proíbe qualquer interferência do Estado naquilo que é do domínio das consciências. Ao acrescentar que "não reconhece qualquer culto", a lei francesa não só reforça esta componente como se desenvolve numa base que deixa de ser neutral perante os diferentes cultos, antes encarando-os com desconfiança.
Assistimos assim ao desenvolvimento de uma ideia, tendencialmente iliberal, que apenas concebe a laicidade não como neutralidade do Estado perante cultos que reconhece e estima na sua variedade, mas como oposição do Estado à presença de qualquer culto nos espaços públicos, remetendo-os em exclusivo para a esfera privada. Mais: aquilo que é a definição de uma característica dos Estados - há Estados laicos tal como há Estados confessionais -, acabou a ser assumido por indivíduos como sendo credo próprio. Porém, não se pode ser laico tal como não se pode ser confessional: é-se sim ateu, agnóstico ou crente. A não ser que se tome a laicidade como uma outra forma de religião, caminho perigoso pois redundaria numa nova religião de Estado, logo em novas intolerâncias.

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