Público - 28 Dez 03
Profissão: Mãe do Luís, Pai da Leontina, Mãe do João
Por CATARINA GOMES (TEXTO) E LUÍS RAMOS
Maria do Céu é conhecida pelo pessoal médico da unidade de queimados do
hospital pediátrico Dona Estefânia, em Lisboa, apenas como "a mãe do
Luís". Acontece o mesmo aos outros pais, que ali andam todos de igual -
bata branca, botas de papel verde e touca verde, para evitar infecções
trazidas de fora.
Naquele dia, "isto fez dia 20 dois meses e meio", todo o povo da aldeia se
juntou à volta do Luís depois de lhe ter acontecido aquilo. O filho de 14
anos tinha-se encostado a um fio de alta tensão que estava demasiado perto
do sótão da casa onde estava a brincar em Lamelas, concelho de Castro
Daire, distrito de Viseu.
Ela soube-o um pouco depois, quando o telefonema lhe entrou pelo
restaurante - onde é ajudante de cozinha - a dentro. Seguiu na ambulância
com a roupa de trabalho desse dia, primeiro até Coimbra, onde a unidade de
queimados estava cheia, e depois até ao Dona Estefânia. Desde então tem-se
remediado com as roupas que uma prima que mora em Lisboa lhe empresta.
Assim como assim, anda sempre de "farda".
"Na ambulância parece que vinha pior do que ele, num certo ponto",
recorda. "Vai ter que ter coragem, para muito tempo" - o aviso do
enfermeiro que seguia com ele rumo ao hospital era esclarecido, sabe-o
hoje quando não tem ainda fim marcado a vida que se interrompeu. O
regresso à vida de Lamelas, à "pequenina" de sete anos que deixou com os
sogros, porque o pai está a fazer pela vida no Luxemburgo e vem cá quando
pode, deu-se numa única semana em que regressou para pedir o subsídio de
desemprego, porque não pôde continuar a trabalhar.
Onde se encontra, na unidade de queimados, "há que ser paciente", uma
frase que parece ser de auto-sugestão, porque os dedos da "mãe do Luís"
insistem em constantemente tamborilar o tampo asséptico de uma mesa de
hospital que teima em não estar suja, em não ter migalhas para apanhar,
nódoas para esfregar. "Estou saturada."
Faz-lhe falta "a vidinha", "a lida da casa". "Se pudesse, limpava isto
tudo" - e o olhar percorre a mesa, as paredes brancas em volta e vai até
ao tecto, tal é o tempo que lhe sobra de brincar com o filho, de jogar com
ele às cartas, de ver televisão, mesmo somados os desabafos com os outros
"colegas" pais, que parece que já conhece há anos. "Aqui não se faz nada.
Eles não deixam fazer nada". Nem as agulhas do "crochet" com que se
costuma entreter, quando às vezes tinha vagar, ali puderam entrar, por
razões de segurança. Não pode cozinhar, limpar, tricotar, manter sequer
vestígios das suas rotinas.
Os primeiros tempos do internamento de Luís ainda foram preenchidos de
acontecimentos: primeiro o Luís estava acamado e a soro, depois já não
estava; depois tinha a cara inchada, a seguir já não; mais tarde podia
andar por ali de cadeira de rodas, agora já anda com o pé direito meio
assente no chão. Mas os progressos parece que demoram mais porque se fazem
às escondidas, atrás dos pensos. Dois enxertos de pele no pé direito têm
que pegar, mas é "a carne quem manda, têm que crescer tecidos novos", um
crescimento que espia a cada mudança do penso mas que não pode ser
adiantado, é como o relógio.
Por isso, foi arranjando rotinas, enquanto o filho "vai para a escola" ela
aventura-se por ambientes que foi tornando familiares, vai até ao jardim
do hospital, dá um pulo a um café ali perto porque descobriu que "é de uma
senhora lá da terra", depois "vai esperá-lo à escola". À pergunta em que
ano está o Luís, responde que "está no 7º ano", mas isso é lá na terra,
aqui "a escola é mais computadores, é mais para se distrair".
Sem se aperceber disso cai por terra a normalidade de uma rotina que é de
faz de conta. Ainda assim, ela faz sempre questão de sair do hospital
quando ele entra para "as aulas", como fazia em Lamelas para ir para o
trabalho, e depois só reentra para ir esperar o Luís "à escola", que
funciona numa das salas num dos corredores do hospital.
O hospital fez com que o dia lhe perdesse as fronteiras. "É sempre a mesma
coisa..." Só lhe restam as refeições, na parte da tarde - têm direito a
que lhe sirvam o almoço e depois o jantar os familiares que vivam a mais
de 30 quilómetros do hospital.
O período mais bem demarcado do dia é quando chega a noite e é suposto
dormir-se. "O pior momento do dia", o que mais custa a ir-se embora.
"Chamam-lhe cadeirão", o assento preto articulado onde Maria do Céu diz
que dorme mas não descansa. Para além do desconforto do substituto da
cama, nas enfermarias de crianças o primeiro choro de uma das três, às
vezes quatro, crianças ali internadas funciona como uma peça de dominó
encavalitada sobre as outras: um menino acorda a mãe, que acorda a criança
que está ao lado, que acorda a mãe, que acorda a mãe ao lado, que
por solidariedade pergunta "o que é que o menino tem?", até estarem todos
de luz apagada mas de olhos abertos.
"Se dormir 3 ou 4 horas já é muito", explica a mãe do João, Ana de Jesus
Alves, com expressão desgastada. O dela, o João, de sete anos, gritava
muito com os pesadelos que quase sempre envolviam um autocarro como aquele
que lhe atropelou a perna. Por isso não chama àquilo dormir, opta por lhe
chamar "descansar o corpo".
Porque "a cabeça está sempre no ar: ou lá na terra ou aqui na miúda",
também explica como é o pai da Leontina, Luís, de 40 anos, apesar de não
dormir no hospital. Por ser o único pai, sentiu-se mal "em dormir entre as
mulheres" e optou por passar as noites na pensão Flor, a mais barata que
encontrou.
Armador de ferro de profissão, está desempregado quase desde que a menina
de quatro anos nasceu, porque ela sofre "da doença de espinha bífida" e
tem constantemente de estar sob o olhar dos médicos de Lisboa. Passa
metade do ano na capital e o resto na terra, em São Roque (concelho de
Ponta Delgada). Cada vez que vem a Lisboa deixa para trás oito filhos e
mais a mulher para tomar conta deles.
Numa espécie de coro para se animarem, todos sentem que podia ter sido
pior, "além do azar teve uma sorte", diz Maria do Céu. Luís "podia ter
ficado maluquinho e numa cadeira de rodas" com o raio que lhe veio do fio;
o João atropelado pela carrinha da escola "podia ter perdido a perna" e a
Leontina podia não conseguir andar como acontece a muitos dos que têm
espinha bífida e "esta graças a Deus anda e é inteligente ". São frases
repetidas que os ajudam a aguardar. |