Diário de Notícias - 27 Dez 03

Prendas de Natal
Xavier Pintado   

Com a aproximação do Natal um problema se pôs praticamente a todos nós: que prendas dar, à esposa, ao marido, aos filhos, aos netos, aos avós! Nos velhos tempos - naquilo que muitos ainda designam por «o meu tempo» - o problema era simples. Éramos uma sociedade simples e as prendas que dávamos e recebíamos eram quase sempre modestas. Mas davam alegria porque eram dadas e recebidas como gestos ou expressões de um sentir, de uma proximidade... Com a «afluência» o problema complicou-se. O que dão os outros pais, os outros avós, os outros amigos? A nossa prenda está à altura?

Na sociedade em que vivemos, e a que alguém chamou, não apenas de economia de mercado, mas «sociedade de mercado», o problema complicou-se: a concorrência instalou-se por todo o lado e estendeu-se também às prendas: às de aniversário e às de Natal. O problema é resolvido como as estatísticas hoje mostram, como o problema do voto: segundo o seu porta-moedas. Os ricos e a classe média - pelo menos a classe média-alta - vota geralmente «conservador», enquanto o pobre e aquele que pretende apresentar-se como pobre ou próximo do pobre vota maioritariamente «à esquerda». Donde alguém ter dito que a situação ideal consiste em ser rico e de esquerda! A confusão instalou-se e as coisas deixaram de ter sentido, autenticidade.

Assim sucede também com as prendas de Natal. Estas não traduzem senão a nossa capacidade de dar. Mas o problema complicou-se ainda mais com o aparecimento dos grupos e movimentos de protesto: os anti-globalização, anti-consumismo, anti-prendas de Natal! Esses movimentos multiplicaram-se e espalharam-se por toda a parte: nos EUA, na Europa, no Mundo. Mas mostraram-se particularmente activos na América do Norte, na Inglaterra, na Alemanha, Dinamarca, Finlândia e Itália. Movimentos anti-consumismo e promoção incontida do consumo através do assédio publicitário dirigido particularmente aos jovens e às crianças, com técnicas sofisticadas de acção psicológica, que vêem na afluência e na vaga de consumo uma «doença do nosso tempo». E esses movimentos resolveram agora atacar com particular agressividade na época pré-natalícia propondo um dia sem compras, à semelhança do «dia sem carros» dos movimentos de defesa do ambiente.

O choque intensificou-se, em particular nos Estados Unidos, no dia de celebração de acção de graças dos primeiros colonos, precisamente quando o comércio e os grandes armazéns tinham montado uma campanha particularmente forte e custosa de promoção de vendas centrada na época natalícia. Estes últimos argumentam que sem consumo não há emprego e se reduz o número de postos de trabalho, especialmente num momento em que são os consumidores que sustentam a economia e afastam o perigo de recessão; mas os primeiros invocam o excesso de endividamento das famílias e consumidores, que há que combater para impedir que se gere uma situação insustentável, à beira da qual se encontra já cerca de um quarto das famílias inglesas, e mais ainda entre nós. Há também aqueles que propõem o «consumo ético», ou consumo em que uma percentagem elevada daquilo que o consumidor paga vai para o produtor, especialmente dos países pobres, em vez de ir engrossar margens da distribuição; ou então de alimentos produzidos sem a ajuda de produtos químicos que deteriorem o ambiente.

O argumento é aqui o de que a grande maioria dos consumidores não considera senão o impacto das suas aquisições nas próprias vidas ou satisfação pessoal, sem ter em conta as economias externas negativas de muitos produtos. É necessário acordar a consciência ou sentido ético dos nossos actos também no consumo, à semelhança do que se está a fazer ao bater-se pela responsabilidade social da empresa e por um desenvolvimento sustentável.

Se queremos promover o emprego e o consumo como factor gerador de emprego e bem estar, porque não fazê-lo dando aos que mais precisam: aos pobres, às «charities» ou instituições de beneficência? O Natal é, ou devia ser, um tempo particularmente propício a estas reflexões, agindo como seres responsáveis e humanos que se interrogam ou interpelam sem necessidade de confrontos ou «movimentos-anti».

Mas as campanhas continuam, nos anúncios, nos suplementos natalícios dos jornais, em busca da melhor prenda ou prenda ideal: na moda, na alta costura, na joalharia, nos relógios de marca... Num desses suplementos encontrei a sugestão de que num tempo de endividamento incontido como o presente, a melhor prenda é «dinheiro»: não o «cheque-prenda», mas uma quantia generosa acompanhada de uma palavra amiga: «para a prenda dos teus sonhos»! Será essa, porém, a melhor proposta? A melhor resposta para este problema das prendas de Natal ouvi-a numa emissão pré-natalícia de uma rádio confessional suíça intitulada «une minute par jour». Dizia simplesmente: aproxima-se o Natal, e numa sociedade rica como a nossa, todos ou quase todos teremos uma ou várias prendas. E talvez prendas caras... Mas muito poucos, quase certamente, teremos a prenda que mais desejaríamos! Para acrescentar, após um ligeiro silêncio: o senhor X e a senhora Y têm um filho que se droga e faz das suas vidas um inferno. A prenda que mais desejariam seria a de que deixasse de drogar-se; mas essa quase certamente não a terão... A senhora Z foi durante anos feliz: amava o marido e ele amava-a; mas um dia este encontrou uma outra paixão e ela passou a ser uma mulher infeliz. A prenda que mais desejava seria a de que ele voltasse a ser um marido fiel e a amá-la como outrora. Mas essa prenda não tem ela esperança de recebê-la... E os filhos de um casal que em tempos se amara e entendera eram também crianças felizes. Até ao dia em que as querelas e conflitos entre pais passaram a ser diários e estes se separaram. E eles, como tantos outros, passaram a ser crianças infelizes. A prenda que mais alegria poderia trazer-lhes seria a de que os pais voltassem a entender-se e amar-se; mas provavelmente terão prendas do pai e da mãe, prendas em duplicado, e possivelmente prendas caras... Mas essa dificilmente terão!

Para concluir com um comentário e uma proposta: tudo isto porque as prendas que nós damos e recebemos são «coisas» e aquilo de que numa sociedade rica mais necessitamos não é de coisas, mas de gestos, sentimentos ou atitudes, e estas não se encontram no mercado... Sugerindo depois: e se aproveitássemos o Natal para fazer um Natal diferente, dando àqueles que são próximos e amamos a prenda que mais desejam e que é, afinal, a que nos propõe Aquele cujo nascimento celebramos?

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