Público - 22 Dez 03

O Aborto pelo Natal
Por MÁRIO PINTO

1. Em entrevista ao Expresso, interrogado sobre a despenalização do aborto, o Senhor Bispo do Porto disse: "Eu sou contra a penalização". Estas cinco palavras foram entendidas como resolvendo uma dificílima matéria de direito, de filosofia, de biologia e de fé, pondo em causa, até pelo contexto, um inequívoco ensinamento da Igreja. A Comissão Permanente da Conferência Episcopal entendeu necessário vir reafirmar publicamente a doutrina da Igreja contrária à liberalização do aborto e o próprio Senhor Bispo do Porto veio depois também com um comunicado esclarecendo "que a pessoa humana tem direito à vida desde a sua concepção até à morte natural" e acentuando a sua fidelidade à Igreja - o que, obviamente, não se punha em causa.

Deve contudo reconhecer-se que o episódio perturbou muita gente que tem convicta e generosamente defendido entre nós as posições da Igreja. E influenciou as posições partidárias na questão da política legislativa sobre uma matéria que é de fundo também na ordem civil.

Recorde-se que a Constituição Pastoral do Vaticano II, "Gaudium et Spes", diz, a propósito da transmissão da vida, não apenas que "esta deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção", porque acrescenta imediatamente: "o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis". E o actual Papa escreveu, na Encíclica "Evangelium vitae": "no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal natureza, nem dar-lhe a aprovação com o seu voto".

2. Todos sabemos muito bem que a lei de um Estado que é separado das Igrejas, como Portugal, não está dependente de uma concepção religiosa - e os católicos não querem um Estado confessional, querem ser iguais aos outros, livres de expressarem as suas opções enquanto cidadãos. Mas também sabemos que nem por ser separado das Igrejas um Estado está dispensado de proteger e garantir os direitos fundamentais da pessoa humana, o primeiro dos quais é o direito à vida.

Ora não é possível resolver a questão legal, ética e política da despenalização do aborto sem primeiro decidir, sem equívocos, acerca dos direitos do filho. Os direitos ou interesses da mãe também entram na questão, mas não a esgotam. A questão é sempre de conflito entre interesses ou opções da mãe e a vida do filho. Não podemos fugir deste dilema. Quando uma mulher diz que manda no próprio ventre, e isso é transformado em bandeira mediática, quer dizer que é proprietária do filho gerado e que este não passa de uma víscera? Pode então fazer dele o que quiser, inclusivamente vendê-lo no mercado para cosméticos ou experiências de laboratório? Claro que não se podem ignorar as graves circunstâncias que muitas vezes pressionam dramaticamente a mulher-mãe que aborta; mas também não se pode perder de vista que o aborto mata violentamente o filho e que este é (ou não é?) um novo ser humano. A piedade justa para com a mãe não pode ser desacompanhada da piedade justa para com o filho. Não há ninguém que não sinta o drama das mães que abortam, e os tribunais têm-no demonstrado, com base nas circunstâncias atenuantes que a lei admite e a opção pela suspensão da pena. Mas não é possível esquecer o filho e o desvalor da sua morte violenta.

Ser contra o aborto, toda a gente é. Portanto, dizer isso não significa nada. Punir justamente e evitar o aborto é que é decisivo contra a liberalização. Porque a liberalização é que é o objectivo daqueles que defendem que as mulheres possam livremente provocar o aborto e o possam fazer nos hospitais públicos ou privados. Para estes, nem a simples descriminalização resolveria o problema se o aborto continuasse ilícito. Seria apenas mais um passo mas não o fim da questão. E teriam razão, porque, se não há crime, qualquer outro ilícito seria ridículo.

Muito frequentemente, os defensores da liberalização do aborto são inimigos da chamada liberalização económica e social: são contra a liberalização da educação, do serviço nacional de saúde, da segurança social, e de muitas outras intervenções estatais. Quando se liberalizam as drogas, defende-se logo que o Estado acorra com uma política de prevenção e remedeio; mas quanto ao problema tão ou mais dramático das mães que não podem ter o seu filho, ainda quando muito o desejavam, propõe-se simplesmente que o Estado diga às mulheres que são livres e lhes ofereça os seus préstimos para lhes matar higienicamente os filhos nos hospitais públicos. De política pública
de prevenção, não se fala.

Há séculos, a Igreja inventou "a roda" dos expostos para receber os filhos recém-nascidos que as mães não podiam criar, e podiam entregar escondidamente, de forma a não serem denunciadas, às instituições religiosas. Hoje, há muitas instituições católicas que fazem o equivalente. Madre Teresa dizia às mães que em vez de abortarem lhe dessem os filhos que não pudessem criar. Miguel Torga, homem de uma elevada espiritualidade embora desconfessional, disse o mesmo a uma cliente que projectava fazer um aborto. Porém, o nosso Estado Social do século XXI, que paga o ensino aos abastados e ricos, não cria um sistema social para resolver o problema das mães pobres ou aflitas, libertando-as da opção dramática do aborto.

Há que reconhecer que a questão tem complexidade científica, ética, jurídica, e social. Mas em contraste com o simplismo científico e ético das campanhas de liberalização do aborto, a Igreja Católica tem sempre estimulado todas as espécies de investigações, incluindo biológicas, sem receio das conclusões. E estas têm vindo a mostrar que não só a liberalização do aborto não resolve as questões sociais, como não se consegue demonstrar um limiar abaixo do qual ainda não há vida humana no embrião. Pelo contrário, acumulam-se provas de que, desde a concepção, está já identificada e programada a individualidade única de cada pessoa humana e é real a interacção pessoal do embrião com a mãe. Esta personalidade e capacidade vão-se desenvolvendo normalmente ao longo de todo o crescimento, desde a concepção até ao nascimento e ainda depois por vários anos, num crescendo que só declina com a velhice e termina com a morte natural. Abrir a porta a considerar o embrião como não sendo pessoa e titular do direito à vida é escancarar uma porta a toda a espécie de manipulações e mercantilizações do embrião, até ao horror.

3. Como estamos a comemorar o nascimento de Jesus Cristo, calha bem recordar a descrição da visita que Maria, mãe de Jesus, fez a sua prima Isabel, mãe de João Baptista. Maria estava grávida de dias e Isabel de pouco mais de seis meses. Lucas, o evangelista que investigou com cuidado a história de Jesus, conta-nos que, "ao ouvir a saudação de Maria, (...) Isabel (...) exclamou: "bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre (...) logo que chegou aos meus ouvidos a tua saudação, o menino saltou de alegria no meu seio". Foi então que Maria disse a oração de louvor mais bela de toda a Bíblia, a "Magnificat". Todo este encontro é reciprocamente o de dois nascituros (um deles de dias) e de suas mães. A natureza humana das mães e dos filhos, incluindo a de Jesus, é afirmada pela fé católica. A presença divina não a substituiu.

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