Ecclesia - 16 Dez 03
A vida humana nascente
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Todas considerações sobre o início da vida humana, qualquer que seja a via
da abordagem, teológica, antropológica, filosófica ou jurídica, não podem
eximir-se a uma reflexão biológica. Existem muitas razões para um debate
generalizado sobre o início da vida. Há actualmente muitas dezenas de
milhares de embriões humanos que se encontram conservados artificialmente
no frio, excedentários das intervenções de procriação assistida; o seu
destino será necessariamente a destruição, visto que para eles não será
possível encontrar acolhimento no seu natural meio de desenvolvimento - o
útero preparado para a maternidade. O tema das formas iniciais da vida
humana adquiriu um novo relevo após os debates sobre a utilização das
células primordiais na investigação básica ou perseguindo objectivos
terapêuticos. As questões ligadas à legalização do aborto,
transversalmente presentes nas sociedades contemporâneas, estando embora
mais relacionadas com estádios posteriores do desenvolvimento, referem-se
ainda às etapas iniciais da vida humana e às condições do seu acolhimento.
Há uma questão prévia neste debate: é necessário que a interpretação dos
dados recolhidos das ciências experimentais se mantenha fiel a uma lógica
científica e as conclusões não a ultrapassem no sentido de se atribuir um
significado de valor aos elementos demonstráveis da observação; é
necessário, ainda, que os intervenientes das ciências humanas tenham uma
clara compreensão dos dados da ciência e os respeitem no sentido de
fundamentar solidamente as suas afirmações. Perante a existência de
domínios incertos do conhecimento não podem fazer-se afirmações que
modifiquem a clareza do diálogo e contribuam para o desqualificar. O
primeiro facto biologicamente identificável na formação de um ser humano é
a fusão de duas células altamente especializadas provenientes de cada um
dos progenitores contendo metade dos cromossomas de um indivíduo adulto.
Estas células são designadas por gâmetas: o óvulo e o espermatozóide.
Fenómenos semelhantes estão na origem de todos os mamíferos e de outros
seres vivos pertencentes a muitas outras espécies. Quando aquelas duas
células se aproximam, envolvidas por um ambiente biológico característico
de cada espécie, após uma fase de reconhecimento segue-se a penetração do
material genético do espermatozóide no óvulo e a formação imediata de uma
barreira na membrana celular que impede a penetração de novos
espermatozóides. Neste momento inicia-se uma nova cadeia de actividades
sucessivas e encadeadas a partir dos materiais provenientes dos dois
gâmetas que vão actuar como se fossem dois sistemas complementares, com
actividades coordenadas e interdependentes. O que teve lugar foi a
constituição de uma nova entidade que tem designação biológica de zigoto
ou embrião unicelular. O zigoto é, na realidade, uma célula semelhante a
qualquer outra célula de um ser vivo adulto contendo um número duplo de
cromossomas relativamente a cada um dos gâmetas. O zigoto designa-se, por
isso mesmo, como uma célula diplóide. O que vai seguir-se é um período de
reduplicação sucessiva do número de células com genoma idêntico ao da
célula inicial; estas irão distribuir-se radialmente e diferenciar-se no
novo organismo pluricelular. Nas 15 a 20 horas seguintes à fusão dos
gâmetas o zigoto humano vai comportar-se como uma célula orientada pela
informação genética de que está dotada no sentido de uma evolução bem
definida e precisa. Nos genes dos seus cromos-somas está inscrito um
plano-programa que distingue cada zigoto de todos as outras células
(incluindo as células dos seus progenitores). Neles está incluída a
informação constitutiva de um ser com uma identidade única, existente a
partir da fusão dos dois gâmetas, que irá desenvolver-se se as condições
ambientais forem adequadas - isto é, se se satisfizerem os pressupostos do
metabolismo respiratório, das condições de nutrição e de temperatura de
que o ser vivo em absoluto necessita para que se exerçam as suas funções
vitais. Se assim acontecer o novo ser prosseguirá o seu destino e irá
constituir-se num corpo com as características somáticas de uma
determinada figura humana no qual todas as células terão um padrão
cromossómico igual ao da célula original.
Vai prosseguir o aumento exponencial do número de células - designadas por
blastómeros - através de uma sequência de divisões com ciclos de 12 a 15
horas, constituindo um processo complexo que se realiza sob o controlo do
genoma. O desenvolvimento vai condicionar um contacto recíproco entre as
células através da existência de pontes citoplasmáticas e de
microvilosidades. Tal contacto é estreitíssimo no estádio de 8-32 células
- designado por mórula - no qual, devido à formação de conexões
intercelulares complexas, se tornam possíveis as comunicações
intercelulares cuja interrupção provoca alterações graves no
desenvolvimento do embrião. Rapidamente irá seguir-se a organização e a
diferenciação através das quais as células iniciais indiferenciadas se
transformarão, por divisões coordenadas e sucessivas, nas estruturas
primordiais dos órgãos e dos sistemas constitutivos de um corpo humano.
Por volta da 5ª semana da gestação, quando as dimensões de um embrião
humano são ainda inferiores a um centímetro, já estão presentes as
primeiras estruturas cerebrais, os esboços bem definidos do coração, do
aparelho respiratório, do aparelho digestivo e da área geníto-urinária
onde já se iniciou o processo de formação do aparelho reprodutor; até à 6ª
semana são identificáveis as extremidades dos membros e está avançada a
formação do sistema nervoso central; até à 7ª semana a forma do corpo está
completa e é inconfundível; até à 8ª semana o corpo está totalmente
definido, com os seus órgãos e sistemas já constituídos. Os movimentos
espontâneos (saltos, flexões, movimentos do tórax, da cabeça, das mãos e
dos dedos) podem ser avaliados entre a 7ª e a 15ª semanas.
A reflexão sobre todos os dados até hoje demonstrados pelas ciências
experimentais não pode deixar de conduzir à conclusão de que a fusão dos
dois gâmetas inicia o ciclo vital de um novo ser humano. O seu corpo terá
um desenvolvimento autónomo, contínuo e progressivo a partir das fases
mais primordiais seguindo um programa que está inscrito nos seus genes. A
realização desse programa está sujeita às condições que são
características de cada ser vivo - dependência estrita das condições do
ambiente em que vive, da adequada nutrição, da sujeição aos factores de
doença e da exposição às agressões. E está sujeito à morte, muito comum
nas fases iniciais em todos os seres vivos. O embrião humano, logo desde a
fusão dos gâmetas, não é um ser humano potencial. É um ser humano real que
iniciou a sua própria existência.
Alexandre Laureano Santos, Médico |