Público - 12 Dez 03
Morrer na Estrada
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Doze pessoas morreram nas estradas de Portugal durante este último
fim-de-semana alargado. Cinco delas morreram numa colisão frontal entre
dois carros, nessa estrada assassina que é o IP5. Das restantes vítimas,
desconheço os pormenores relativos aos acidentes, apenas tendo registado a
eterna e invariável explicação das autoridades: excesso de velocidade.
Ainda esta semana, aqui no PÚBLICO, li um trabalho feito com
"especialistas" na matéria que, basicamente, refutavam todas as outras
causas possíveis para a ocorrência de tantos acidentes em Portugal,
remetendo tudo para o excesso de velocidade. Estradas mal desenhadas, mau
piso, sinalização errada ou esquecida desde os anos 50? Pouca influência.
Mau ensino, condutores notoriamente impreparados para a estrada, carros
circulando com luzes irregulares, pneus lisos ou travões deficientes? Nem
uma palavra, visto que nada disso é controlado nas estradas pela BT, que
se limita a ligar o radar para caçar o excesso de velocidade. Chegava-se
ao ponto de às tantas se referir o excesso de velocidade na travessia de
povoações, que hoje em dia estão semeadas de semáforos que viram vermelho
à passagem a mais de 50 km por hora (um dos novos manás da caça à multa,
visto que não há condutor que não desrespeite ocasional e até
involuntariamente um limite tão baixo e, independentemente da velocidade a
que o fizer - pode ser a 55 km/hora -, além da multa, comete uma
"infracção grave"). Pois, um dos especialistas ouvidos declarava
tranquilamente que a solução lógica de construir variantes à travessia das
povoações "não resolveria o problema". É caso para perguntar qual o
problema que não resolveria - o dos atropelamentos de peões ou o de
assegurar o número mínimo de multas e infracções necessários a uma boa
"prevenção rodoviária"?
Em Espanha, porém, onde o fim-de-semana foi marcado por temporais, os
números foram muito mais dramáticos: 76 mortos, quase o dobro,
proporcionalmente, dos registados em Portugal. A dimensão da hecatombe,
inabitual em Espanha, fez com que o director-geral de Trânsito viesse
explicar, quarenta e oito horas depois, as razões e as circunstâncias de
todos os acidentes mortais, com números detalhados e compreensivos que
nada têm que ver com a explicação simplista do excesso de velocidade que
em Portugal já é uma cassete encravada.
Segundo os números divulgados, 55 por cento dos condutores considerados
culpados em acidentes com vítimas mortais eram menores de 30 anos. Metade
dos acidentes foi atribuída a distracção dos condutores; 10 por cento a
manobras irregulares; 12,7 por cento a culpa dos peões e 3,2 por cento a
animais; enfim, 25 por cento foi atribuída a excesso de velocidade,
especificando-se que esse excesso não violava, em muitos casos, os limites
fixados, apenas era inadequado às condições do piso e do clima, ou seja,
era devido a má condução. Enfim, número este estarrecedor, 35 por cento
dos mortos e feridos circulava sem cinto de segurança, 27 por cento não
foi possível apurar e apenas ficou como certo que 38 por cento levavam
cinto colocado.
Quando ocorreram os acidentes? Quarenta por cento durante o final do dia,
à hora de maior circulação; 26 por cento da meia-noite às sete da manhã, e
o restante durante o período da manhã ou do princípio da noite. Quarenta
por cento morreram durante o período em que a circulação se fazia já de
faróis acesos, embora isso abranja horas de muito menor densidade de
tráfego, ou seja, muita gente não sabe guiar de noite.
E onde morreram estes condutores? Eis uma estatística elucidativa: 70 por
cento em estradas nacionais, 19 por cento em estradas tipo IP e apenas 11
por cento em auto-estradas. Estes números coincidem com os nossos: em
Portugal, 10 por cento dos mortos acontecem nas auto-estradas, onde,
todavia, são cobradas 85 por cento das multas de excesso de velocidade. É
um número que dá que pensar e coloca a inevitável pergunta: por que razão
está a polícia não onde se morre, mas onde é fácil cobrar multas? (E, já
agora, outra pergunta correlativa: por que razão o radar fixa sempre o
momento de uma ultrapassagem ou de uma descida, quando já se sabe que são
circunstâncias onde o condutor normal excede temporariamente a sua
velocidade média de circulação?)
As perguntas levantadas por este rápido e eficaz estudo a que as
autoridades do país vizinho procederam (em comparação até com a ausência
de estudos sérios semelhantes entre nós, onde tudo é chutado para a
explicação do excesso de velocidade ou do álcool) conduzem-me a uma
conclusão que já tantas vezes formulei: o que verdadeiramente mata nas
estradas, aqui como em qualquer lugar do mundo, é a má condução e a falta
de educação - técnica e cívica - ao volante. E a razão por que os
portugueses se matam mais do que os outros é porque são piores condutores
e são mais incivilizados. Depois, também têm piores estradas, uma
sinalização regra geral criminosa, provavelmente abusam mais do álcool ao
volante do que os outros e talvez conduzam mais depressa do que os outros
e, sobretudo, mais do que aquilo de que são capazes sem correr riscos.
O excesso de velocidade é apenas um factor de má condução. E é um factor
subjectivo, que varia de condutor para condutor, de carro para carro, de
piso para piso. Há condutores bem mais perigosos a 60 do que outros a 120,
assim como há estradas nacionais bem mais perigosas a 90 do que qualquer
auto-estrada a 120. Aliás, tenho a certeza de que, se fosse realmente
possível obrigar todos os condutores a não ultrapassar os 120
regulamentares da auto-estrada, o número de acidentes aumentaria, porque a
circulação se tornaria mais compacta e entrariam em jogo os dois
principais factores de risco numa auto-estrada: a distracção e o sono.
Como disse o director-geral do Trânsito de Espanha, quando lhe perguntaram
se a chuva intensa poderia justificar a hecatombe do fim-de-semana
passado, "a chuva, por si só, não mata. O que mata é a má condução à
chuva". O mesmo se pode dizer da condução nocturna ou do excesso de
velocidade.
Se pudermos abandonar a política das explicações simplistas, cómodas e
financeiramente rentáveis e nos concentrarmos na má condução como causa
fundamental dos acidentes, poderemos começar a tratar o problema de
montante a jusante. A montante, exigindo um ensino que, em vez de ensinar
a arrumar o carro ou a curvar "no eixo da via", ensine a conduzir contra
os verdadeiros factores de risco, nomeadamente ensinando a ultrapassar, a
conduzir de noite, sob chuva ou com piso escorregadio, e ensinando que o
estado dos pneus, das luzes ou dos travões (que a polícia de estrada
jamais se lembra de controlar) são factores de perigo tão grandes quanto a
condução sob o efeito do álcool. E, a jusante, mudando radicalmente a
filosofia vigente na caracterização do que seja um mau condutor,
substituindo um cadastro que se baseia unicamente nas infracções
registadas por outro que se baseie na taxa de sinistralidade causada.
Ou seja, o importante não é registar quantas vezes é que se estacionou
mal, se passou o semáforo limitativo de velocidade das povoações ou
quantas vezes se excederam os 120m km/ hora numa auto-estrada, se com isso
não se cometeu qualquer manobra perigosa nem se deu causa a acidentes. O
importante é perseguir, autuar e registar como condutores perigosos os que
circulam com pneus "carecas", os que não apagam os máximos quando se
cruzam com outros carros, os que param, sem sinalização e em plena faixa
de rodagem de uma estrada, à saída de uma curva, para irem apanhar
cogumelos, os que ultrapassam pela berma numa fila, os que aceleram
deliberadamente para que o carro que acabou de os ultrapassar não possa
retomar a sua via em segurança, os que acham que não pôr o cinto de
segurança é sinal de coragem machista. E, obviamente, os que se tornaram
causadores de acidentes de que resultaram mortos ou feridos graves. Esses
são os que verdadeiramente matam e é simplesmente absurdo um sistema em
que alguém que já foi responsável por vários acidentes, que inclusive
causou mortos, possa continuar tranquilamente ao volante pelo simples
facto de não se ter apurado contra ele qualquer infracção, mas "apenas"
uma imperícia assassina.
Anuncia-se agora o cúmulo do absurdo: uma revisão do Código da Estrada
para passar a considerar o estacionamento em cima do passeio como
"infracção grave", confundindo-se o que é uma ilegalidade passível de
multa agravada com um acto de condução perigosa. Assim, não vamos lá.
Enquanto o objectivo central da nossa prevenção rodoviária for a obtenção
de receitas a favor do Estado, enquanto as entidades fiscalizadoras
tiverem interesse ou participação no montante das multas, e enquanto, para
legitimação desta política e para maior recolha financeira, se insistir na
explicação pronta a servir de que todos os acidentes têm que ver com o
excesso de velocidade, nada de essencial mudará. |