'Invocatio dei' e Constituição europeia J. H. H. Weiler
Nos círculos liberais progressistas a ideia de que
o Preâmbulo da Constituição da Europa inclua uma referência a Deus e/ou
às «Raízes Cristãs» da Europa foi encarada com escárnio e mesmo com
desprezo. Tal inclusão, diz-se frequentemente, iria entrar em conflito
com uma tradição constitucional europeia de neutralidade do Estado em
matéria de religião; iria também colidir contra o compromisso político
europeu de uma sociedade tolerante e multicultural. O contrário é
verdadeiro: uma referência a Deus é não só constitucionalmente
imperativa como politicamente indispensável.
A Europa apresenta, constitucionalmente, uma riqueza característica.
Como exemplo de lei constitucional positiva, temos o caso de todos os
membros da UE, sob a tutela da Convenção Europeia dos Direitos Humanos,
estarem obrigados ao princípio do «Estado Agnóstico ou Imparcial» que
garante tanto a liberdade de religião como a liberdade da religião. Há
aqui uma medida notável de homogeneidade - mesmo que em alguns assuntos
ambíguos, como os véus ou os crucifixos nas escolas, os vários Estados
membros avaliem de forma diferente a linha delicada entre a liberdade
religiosa e a liberdade da religião.
Mas quando se trata de simbolismo e iconografia constitucional a Europa
é notavelmente heterogénea: num extremo encontramos países como a
França, cuja própria Constituição define o Estado como secular (laico).
No outro extremo temos países como a Dinamarca e o RU, onde existe uma
religião estatal estabelecida. No RU, a Rainha é não só chefe de Estado
como também chefe da Igreja. No meio, temos países como a Alemanha, cujo
preâmbulo constitucional faz uma referência explícita a Deus, ou a
Irlanda, cujo preâmbulo se refere à Santíssima Trindade e muitas outras
variantes. No total, cerca de metade da população da União Europeia vive
em Estados cujas constituições fazem uma referência explícita a Deus
e/ou à Cristandade. O que é notável acerca da Europa - um valor a ser
preservado - é que mesmo nesses Estados os princípios de liberdade de
religião e de liberdade da religião são inteiramente respeitados.
Ninguém pode argumentar com credibilidade que, digamos a Dinamarca, está
menos empenhada na democracia liberal ou que é um Estado menos tolerante
do que, digamos, a França ou a Itália, apesar do facto de a Dinamarca
reconhecer uma Igreja Oficial do Estado e a França e a Itália serem
confessadamente seculares.
Nos seus itens legais positivos, a Constituição europeia reflecte a
homogeneidade da tradição constitucional europeia: está completamente
empenhada nas noções de liberdade de religião e liberdade da religião.
No que se refere ao seu Preâmbulo a Constituição da Europa deve
reflectir a heterogeneidade europeia.
Deve reflectir o compromisso europeu para com a nobre herança da
Revolução Francesa, como está reflectida, digamos, na Constituição
francesa, mas deve reflectir em igual medida o simbolismo das
constituições que incluem um invocatio dei. A recusa de fazer uma
referência a Deus está baseada no falso argumento que confunde o
secularismo com a neutralidade ou a imparcialidade. O preâmbulo tem uma
escolha binária: sim a Deus, não a Deus. Porque é que excluir uma
referência a Deus é mais neutral do que incluir Deus? É favorecer um
ponto de vista, o secularismo, em vez de outro, a religiosidade,
mascarando esse favorecimento de neutralidade. Então, como é que se pode
respeitar ambas as tradições? A nova Constituição polaca dá uma resposta
elegante: reconhece as duas tradições: «Nós, a Nação Polaca - todos os
cidadãos da República, tanto os que acreditam em Deus como fonte da
verdade, da justiça, do bem e da beleza, como aqueles que não partilham
de tal fé mas que respeitam esses valores universais como tendo origem
noutras fontes, iguais em direitos e obrigações em favor do bem
comum...» Uma solução semelhante pode ser encontrada para a Constituição
europeia.
A Europa não pode pregar o pluralismo cultural e praticar o imperialismo
constitucional.
O imperativo político é tão grande como o constitucional. A Europa está
comprometida com a democracia - em todo o mundo. Mas no modo de pensar
europeu, a democracia deve ser difundida pacificamente, pela persuasão,
não pela força das armas. Um dos grandes obstáculos para a disseminação
da democracia é a opinião largamente difundida de que a religião e a
democracia são inimigas uma da outra. De que adoptar a democracia
significa banir Deus e a religião do espaço público e torná-los num
assunto privado. É, sem dúvida, essa a mensagem que o modelo
franco-americano (estranhos companheiros de cama) de democracia
constitucional envia para o mundo. Isto pode ter sido verdade a respeito
da relação entre a Igreja e o Estado no tempo das revoluções Francesa e
Americana. Mas será essa a mensagem que a Europa deseja enviar para o
mundo de hoje? Deverá a Constituição europeia proclamar que Deus deve
ser expulso do espaço público? Durante quanto tempo temos de ficar
prisioneiros dessa experiência histórica? O Estado mudou, a Igreja mudou
ainda mais.
Nesta área, como em muitas outras, a Europa pode liderar pelo exemplo e
oferecer uma alternativa ao separatismo constitucional americano (e
francês). Pode ser a ilustração viva de que a religião já não tem medo
da democracia e de que a democracia já não tem medo da religião.
Esse verdadeiro pluralismo é o que pode, por um lado, garantir
efectivamente tanto a liberdade religiosa e a liberdade da religião como
também, sem medo, reconhecer e reflectir, até na Constituição, a fé viva
de muitos dos seus cidadãos. Apenas este modelo tem alguma hipótese de
persuadir todas essas sociedades que ainda vêem a democracia com
suspeita e hostilidade.