Em Novembro de 2037,
Portugal passou a chamar-se T-011. Essa mudança veio de uma directiva
comunitária que impôs a cada país da União Territorial (o novo nome da
Europa) a designação pela letra T seguida do número de ordem na adesão à
comunidade. Este é, simplesmente, o resultado mais recente do processo de
«neutralidade ideológica» em que a antiga Europa está empenhada há
décadas. Tudo começou em 2003 com os debates à volta dos símbolos
religiosos em lugares públicos. Na ex-França (actual T-002) protestava-se
contra os véus das alunas muçulmanas nas escolas, enquanto em T-005 se
discutiam os crucifixos nas salas de aula e por toda a União alguns
rejeitavam a referência ao cristianismo na Constituição Europeia. Todos
estes casos foram resolvidos pela segunda adenda a este documento, que em
2006 decretou que o Estado deveria manter sempre a mais estrita tolerância
e neutralidade em questões ideológicas, para não ofender a sensibilidade
de qualquer minoria. Mesmo na unanimidade e consenso, jamais as
autoridades poderiam cair na tentação de ceder para evitar problemas
futuros.
As questões multiplicaram-se. Logo a seguir foram denunciados os feriados
sectários, como o Natal. As festas religiosas nacionais eram um insulto a
todos os cidadãos não-cristãos. Os feriados desapareceram com mesma
directiva que obrigava a cobrir com tapumes os templos e sedes de partidos
para não ofender a sensibilidade dos transeuntes. Também os nomes dos
meses do ano, que nas línguas europeias vêm da mitologia, tiveram de ser
mudados. As sugestões dos calendários da Revolução Francesa e positivista
de Comte foram rejeitadas por igualmente facciosas. O único consenso foi
passar a usar letras nos meses. Mas na numeração dos anos manteve-se a
situação, para facilitar contactos com outras zonas. Só que se chamou «era
estela» e não «era cristã», porque o acontecimento marcante passou a ser
um facto cósmico: a «estrela dos reis magos». Deve dizer-se que este
atitude era estritamente europeia, pois as outras zonas do mundo,
sobretudo EUA, Índia, China e Islão, estavam em afirmação crescente das
suas culturas. Eram aliás as minorias vindas dessas regiões que levantavam
os problemas e iam exigindo o crescente recuo da cultural europeia para a
neutralidade. Depois a questão ultrapassou o âmbito religioso. Em
21-H-2024 as disciplinas de História, Filosofia e Línguas foram retiradas
dos programas escolares oficiais, pelas mesmas razões que 15 anos antes
tinham tirado as cadeiras de Religião: era impossível arranjar matérias
que respeitassem a neutralidade do Estado. Além disso, a lei deixou de
regulamentar casamentos ou divórcios de qualquer espécie, por serem opções
íntimas de cada um. As ruas são lugares públicos e de repente descobriu-se
muita gente afectada pelos seus nomes. Por toda a Europa houve esforços
para apear monumentos ou alterar os nomes de ruas em honra de pessoas que
só agradavam a minorias. E havia minorias ofendidas por todas as ruas e
estátuas. As controversas personalidades históricas, sobretudo políticos e
militares, não podem ser honradas pelo Estado neutro. A única solução foi
usar números nas ruas. Agora tiraram-se os nomes aos países, que lembravam
velhos impérios. Há já quem sugira que se substituam os nomes das pessoas,
que podem ser ofensivos para alguns, pelo número do Bilhete de Identidade.