Público - 3 Dez 03

As Contradições do Terráqueo
Por LUÍS FERNANDES

Um dos traços mais intrigantes dos nossos dias é o do brutal desfasamento entre a capacidade de produzir ciência complexa e tecnologia sofisticada, por um lado, e por outro a incapacidade de pensar elaborada e criticamente os fenómenos sociais e humanos. Podemos diariamente assistir, num complicado aparelho de manejo magicamente simples, a debates sobre os chamados temas da actualidade, como o aumento da violência ou os malefícios do mundo da droga, tratados a maioria das vezes pelos intervenientes dum modo confrangedoramente básico, impreciso e vago - pese a aparente articulação complexa da linguagem, instrumento cosmético do encobrimento do oco das ideias. Se me fosse dado resolver equações, gostaria de poder achar solução para esta de ser o terráqueo do séc. XXI ao mesmo tempo tão inteligente e tão estúpido, tão problematizador e tão simplista, tão crente e tão ateu, tão sábio e tão ignorante - tão tudo e tão nada, e tudo às vezes na mesma pessoa e ao mesmo tempo...

"If you want to see colour TV try LSD" - lia-se nos anos 70 no muro do liceu onde estudei. Pois hoje já não é necessário: a televisão coloca-nos já num estado de passividade larvar translúcida, com o único inconveniente de a "trip" ser de tão má qualidade que confundimos a alucinação com a realidade. É por isso que ver tanta televisão faz tão mal como ingerir muita droga, e até pior. Porque com a ingestão televisiva ingerimos simultaneamente droga, enquanto o contrário não é verdadeiro. Destacaremos, a seguir, factos de discreta intensidade mediática ocorridos nos últimos dois meses. Sei que não são acontecimentos impressionantes - mas prefiro buscar pistas para interrogar o destino português a partir de sinais mais ou menos discretos.

"Trip" - as portas são um mistério. Não há nenhuma razão misteriosa nisso: é que as portas abrem para o lado de lá, que por definição é o lado que não é de cá. E é do lado de lá que se acoita o que não é de cá - e logo o mistério. Há 50 anos, Aldous Huxley escreveu "As Portas da Percepção", um percurso sobre os mistérios da mente durante a "trip" de mescalina, poderoso alucinogéneo sul-americano. E Jim Morrison aproveitou a sugestão para baptizar o seu grupo: os Doors abririam muitas portas na arte pop e provavam que o rock era uma revolução. As portas abrem, pois, para o mistério. Exactamente como Portas, o homem que restaura o conceito de "mancebo". Portas também amplia os limites da percepção mesquinha em que andamos mergulhados todos os dias: é preciso uma "trip "do tamanho da de Huxley para viajar por esse Dia da Defesa Nacional. O homem em quem 92 por cento dos eleitores não votaram volta a provar, portanto, que merece estar no Governo. E mais aliviado, agora que o caso Moderna chegou ao fim. Um país falho de ideias, resumido a pouco mais do que o défice e a Casa Pia, precisava há muito dum criativo destes.

Seringas - Os telejornais da noite continuam a exagerar. Em meados de Outubro passaram a notícia da existência de seringas abandonadas num infantário vizinho do Coração da Cidade, instituição de solidariedade social que dá apoio a pessoas vítimas dos mecanismos de exclusão social, conhecida pelo apoio público de Pinto da Costa. Curiosamente, este tinha na semana anterior denunciado a perseguição que o executivo da Câmara Municipal do Porto tem movido a esta instituição, com completa indiferença pelo destino "das 450 pessoas que ali matam a fome diariamente", na expressão do próprio Pinto da Costa. Polémica desnecessária: não existem seringas ao abandono onde quer que seja. Com efeito, os toxicodependentes do Porto já não andam à deriva. Isso era dantes, no tempo da incúria das instituições do contrato-cidade e dos centros de atendimento a toxicodependentes. Felizmente essa época acabou e o Porto é feliz.

Quem poderia portanto ali ter posto as seringas? E quem se terá lembrado de produzir uma peça televisiva a lançar a suspeita sobre o Coração da Cidade logo a seguir à declarações de Pinto da Costa?

Mais seringas - Ia Novembro a meio e deram-nos mais seringas. Um relatório do provedor de Justiça sobre o estado das prisões aconselhava a instalar nestas programas de troca de seringas e de injecção assistida. A ministra da Justiça reagiu de imediato, dizendo em tom categórico: "Comigo nem pensar!" Com certeza, também não estávamos a pensar que fossem salas de chuto com ela. De resto, creio que depois ninguém se sentiria à vontade para as utilizar. Dias depois, a Associação dos Médicos de Saúde Pública vem dizer sim às trocas e não às salas - um empate técnico entre o provedor e a ministra arbitrado pelo sector médico.

Sempre que se fala de medidas de fundo no "problema da droga", temos o protagonismo do costume: juristas e médicos. É assim desde os finais do século XIX, aquando da primeira vaga moderna de toxicomania, a dos morfinómanos resultantes da iatrogenia médica do tratamento com esse opiáceo. O resultado do controlo médico-sanitário e jurídico-moral das drogas, passado um século, está à vista. Ninguém mais se pronuncia sobre as seringas nas prisões? O que pensam os técnicos do sistema penitenciário? E as pessoas a quem se destinam tais medidas? Lembremos, porque não parece ser óbvio, que muitos toxicodependentes são pessoas adultas, que pensam, que votam, que têm opinião, que sabem o que querem. O que está em causa na polémica da troca de seringas é uma mudança de agulhas. Arrepia-se caminho nas intervenções inspiradas pelo modelo da redução de riscos, a que Portugal finalmente aderia acompanhando as tendências dos países europeus mais desenvolvidos, voltando a insistir nos programas livres de drogas, fórmula gasta nos últimos 20 anos com o saldo de cerca de 50 mil toxicodependentes actualmente no nosso país. A ineficácia comprovada destes programas para muitos adictos, obrigando-os ao eterno retorno entre desintoxicação e recaída, faz deles excelentes clientes das clínicas de tratamento do sector privado.

O mundo é uma bola, quem anda nele é que se amola - ouvi esta máxima muitas vezes a minha avó, e depois a minha mãe. Só muito recentemente compreendi o alcance brutal daquela frase: minha avó era uma visionária e, do aperto orográfico duma aldeia transmontana, antecipava em décadas os efeitos devastadores da globalização. Podemos ver o mundo todo sem sair da nossa aldeia. O grande paradoxo actual é que, saindo nós a toda a hora para todo o lado pelo efeito da globalização informativa, continuamos entretidos com o Big Brother e com a vida privada dos famosos. Tendo o mundo todo ao alcance, somos cada vez mais expostos à tabloidização informativa, que é um modo muito coscuvilheiro de entreter o olhar, que não acrescenta nada à nossa compreensão do mundo, que incita à regressão emocional - enfim, uma fórmula existencial de trazer por casa. Dos outros, é claro. Em suma, quanto mais mundo temos, mais por casa andamos - estranho efeito da hipnose televisiva. A televisão, afinal, pode ser uma droga. E cada um de nós tem em casa, por mais humilde que seja o lar, uma sala de injecção assistida...

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