Público - 23 Dez 02
Sociedade Civil
Por JOSÉ MANUEL FERNANDES
A proposta de entrega do segundo canal da RTP à "sociedade civil" está a
levantar uma curiosa tempestade. Curiosa mas significativa.
Como já aqui escrevi, esta solução não foi explicitamente indicada pelo Grupo de
Trabalho sobre o serviço público, de que fiz parte. Mas o que se sugeria no
relatório permitia, entre outras soluções, a agora anunciada.
Como a maioria, não sei como se concretiza um canal com as características do
proposto pelo Governo. Mas ao contrário da maioria, não acho que isso seja uma
impossibilidade (ou uma imbecilidade capaz de fazer rir às gargalhadas, como
proclamam os sabichões habituais).
Há duas razões principais para assim pensar. A primeira decorre da minha própria
experiência; a segunda da crença de que Portugal precisa de mais sociedade civil
e de menos Estado.
A minha experiência é, naturalmente, curta: sempre fui um profissional da
imprensa escrita. No entanto, por duas vezes, fui convidado e aceitei escrever
os guiões para duas séries documentais. O primeiro convite data do princípio dos
anos 80 e foi-me feito pela... Nestlé. Sim, pela Nestlé. Na altura a empresa
comemorava o seu aniversário e queria celebrá-lo celebrando em simultâneo o 10º
aniversário do 25 de Abril. O tema escolhido foi o poder local e pediram-me que,
como jornalista, percorresse o país e descobrisse o melhor que as autarquias
tinham feito nesses dez anos. Daí nasceu uma série, "As Vagas do Tempo",
integralmente paga pela Nestlé e oferecida ao então único operador de televisão,
a RTP. A minha outra incursão no documentário televisivo levou-me à descoberta
da "História Natural de Portugal" e permitiu-me ajudar a equipa independente que
produziu, para o Instituto de Conservação da Natureza, a única série sobre vida
selvagem em Portugal em que teve como referência os documentários da BBC. A
série foi igualmente oferecida à RTP.
Dir-se-á: foram casos isolados. Sem dúvida. E num deles quem pagou até foi um
organismo do Estado. Também é verdade. Mas o essencial não é isso: o essencial é
que foi possível fazer televisão de "serviço público" fora da televisão pública
e com a participação de entidades não públicas.
Ora são essas entidades não públicas - todos nós, no fundo, como refere hoje
mesmo, na sua entrevista, o Patriarca de Lisboa - que são a sociedade civil.
Claro que não existe um número de telefone para onde se possa chamar. Claro que
a sociedade civil que temos é débil e subsidio dependente. Mas isso só torna
mais importante dar-lhe uma oportunidade. O que é mais difícil do que, por
exemplo, escrever que "a sociedade civil não é a D. Arminda da tabacaria da
esquina", como fazia por estes dias Eduardo Prado Coelho. Bem sei que o povo - o
povo verdadeiro - provoca arrepios de espinha à nossa "esquerda caviar", e que é
aí que reside o problema. A razão profunda por que nem se discute a hipótese de
entregar a RTP2 à "sociedade civil" é que se raciocina com
os mesmos preconceitos jacobinos de sempre: o preconceito de que o "povo"
necessita de ser educado, que só o Estado serve para isso, e que no Estado só os
próprios são suficientemente inteligentes para realizar o tal "serviço público".
IPSS? Donas Armindas? Nestlés? Misericórdias? Igrejas? Produtores independentes?
Fundações? Meu Deus, mas quando é que iríamos mandar nisso tudo?
Nunca, como é óbvio. E por isso é que é bom termos mais sociedade civil -
verdadeira e emancipada - e menos Estado.

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