Público
Combate à Pornografia Infantil na Internet
Por MARIA JOSÉ MORGADO
Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2002
À autoridade judiciária, à Polícia Judiciária em caso de urgência, deve ser
permitido o acesso imediato aos dados de tráfego para salvaguarda da prova e da
descoberta da verdade em processo-crime
Foi desmantelada recentemente a maior rede criminosa de exploração de
pornografia infantil nos EUA, a Landslide Productions, Inc. Com sede no Texas, a
rede abastecia-se em pornografia produzida tanto no mercado
americano, como na Rússia e na Indonésia, por exemplo. O negócio consistia na
posse e divulgação junto dos subscritores de materiais e "sites" onde apareciam
crianças em actos sexuais. Número de subscritores: 250 mil. Lucros atingidos:
1,4 milhões de dólares por mês. Custo de assinatura/mês - 70 euros. Também se
dedicava à transmissão de violação de crianças em directo, através da Internet,
num "site" designado "child rape".
Esta prática odiosa e repugnante, que transforma cada vez mais o tráfico de
pornografia infantil numa actividade lucrativa, leva-nos à reflexão de questões
novas, todos os dias colocadas às polícias, aos tribunais, às próprias
operadoras de telecomunicações.
A primeira diz respeito às características desta nova criminalidade. O crime de
abuso sexual de menores internacionalizou-se, as novas tecnologias de informação
facilitaram nos últimos anos o aparecimento de indústrias
criminosas, que operam além-fronteiras e obtêm o máximo lucro com o mínimo
risco.
A produção, posse, divulgação via Internet de pornografia infantil, com grave
abuso da exploração sexual das crianças, constitui uma das formas mais lesivas
da criminalidade organizada transnacional, cuja dimensão tem causado crescente
preocupação na União Europeia. A sua prática e divulgação fazem-se a coberto do
domicílio e da evolução tecnológica ao alcance de todos. As redes de Internet e
de telecomunicações tendem a ser utilizadas como suporte para este mercado
criminoso. O anonimato e a rapidez das comunicações transformam-se em meios
invulgarmente poderosos para os criminosos e perigosos para as crianças enquanto
vítimas destes mercados ilegais.
A segunda reflexão diz respeito às medidas que é necessário empreender, a nível
nacional, para garantir a eficaz protecção das crianças, em especial no domínio
da pedofilia na Internet. O que fazer de modo a impedir e combater o
processamento, a divulgação e a posse de material pornográfico infantil através
da Internet?
Com base no diagnóstico do aumento da exploração sexual das crianças para fins
comerciais e criminosos, a decisão do Conselho da Europa sobre o combate à
pornografia infantil na Internet, de 29 de Maio de 2000, aconselha os
Estados-membros a fomentarem uma investigação e repressão eficazes neste campo.
Entre outras medidas, recomenda a verificação regular (pelos Estados-membros) se
"a evolução tecnológica impõe uma alteração do processo penal para manter a
eficácia do combate à pornografia infantil e, se for caso disso, se devem lançar
nova legislação para esse efeito".
A Convenção do Cibercrime destaca, como medida crucial para o combate aos
delitos informáticos e aos conteúdos lesivos, a salvaguarda da prova digital,
mais concretamente a preservação dos dados de tráfego.
É através destes dados que se torna possível investigar a existência do crime,
quem são os seus autores e o tipo de responsabilidade. Além disso, a convenção
recomenda a punição da mera posse de imagens pornográficas de crianças como
crime, além de considerar os 18 anos como idade de referência.
Actualmente, em Portugal, não existe qualquer obrigatoriedade dos ISP -
fornecedores de Internet, ou das operadoras de telecomunicações, de conservarem
os dados que constituem a prova digital. O nosso quadro legal protege a
segurança e o sigilo profissional do tratamento dos dados, mas não prevê as
excepções necessárias, para a repressão e perseguição penal desta criminalidade.
Os dados de tráfego, segundo a legislação vigente, devem mesmo ser apagados pelo
operador ou prestador do serviço após a conclusão da chamada. O que coloca não
só às polícias mas até às próprias operadoras sérios obstáculos à segurança das
comunicações, à prevenção e repressão do crime, transformando a Internet num
espaço de intolerável impunidade.
A divulgação à Polícia Judiciária ou ao Ministério Público dos dados de tráfego
não viola a privacidade e confidencialidade das telecomunicações, nem viola os
direitos e liberdades fundamentais. Os dados de tráfego não devem confundir-se
com os dados de conteúdo das telecomunicações, cujo conhecimento está sujeito ao
controlo judicial. Segundo a Ciberconvenção, são dados de tráfego aquele
conjunto de dados técnicos destinados à determinação da origem, destino,
caminho, data, hora, volume, duma comunicação. De forma que não estamos a falar
de intercepção de comunicação, mas de informação técnica, que não integra
qualquer segredo relativo às comunicações.
Perante a panorâmica duma delinquência à escala mundial, para cuja prática
organizada apenas é necessário um computador conectado a uma rede de
telecomunicações, o que se pode esperar no futuro, se tais medidas não forem
tomadas? Não se trata de imputar responsabilidades aos ISP - fornecedores de
Internet, ou às operadoras de telecomunicações, porque prestam um serviço e não
censuram conteúdos lesivos. Há que definir regras.
Os ISP, as operadoras de telecomunicações devem ser obrigadas a informar as
autoridades policiais ou o Ministério Público sobre os conteúdos lesivos de que
tenham conhecimento de distribuição através deles.
As mesmas entidades devem ser obrigadas à preservação da prova digital (dados de
tráfego) por período não inferior a seis meses.
À autoridade judiciária, à Polícia Judiciária em caso de urgência, deve ser
permitido o acesso imediato aos dados de tráfego para salvaguarda da prova e da
descoberta da verdade em processo-crime. A essencialidade da consagração legal
de tais medidas, como excepção legalmente permitida à confidencialidade e
privacidade das comunicações, corresponde aos desafios que a Polícia Judiciária
e os tribunais enfrentam diariamente, muitas vezes com perda irremediável da
verdade. Com perda da capacidade de fazer justiça em tempo útil: a volatilidade
dos dados de tráfego (não salvaguardados) representa sempre a vitória da
impunidade.
Procuradora-geral adjunta

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