Público - 22 Dez 02
Truques para as Crianças Descobrirem Cultura
Por JOANA GORJÃO HENRIQUES
Não sabemos se a arte torna as pessoas melhores. Mas sabemos que há maneiras de
fascinar as crianças com espectáculos, concertos e livros. O PÚBLICO pediu a
especialistas de várias áreas que indicassem truques. Truques para que as
crianças não gostem só de barbies e Gameboys. E para que gostem também de arte e
até de obras tão complexas como "Os Lusíadas".
com Ana Cristina Pereira e Rita Pimenta
Esqueça os Gameboys, as espadas e as Barbies. Alguém se há-de lembrar de os
oferecer às suas crianças. Porque não oferecer, este Natal, um bilhete para um
espectáculo, uma exposição, um concerto ou um livro? Este é um percurso pela
arte para crianças, que existe durante todo o ano. Há cada vez mais coisas para
eles descobrirem e também há truques para o ajudar.
"As crianças têm uma necessidade acrescida de arte. Uma criança define-se pela
capacidade de se surpreender com tudo. É isto que procura a arte, que procuram
os artistas", diz Manuel António Pina, poeta e jornalista que escreve histórias
e peças de teatro infantis. "É na infância que se aprende mais e melhor", diz
Helena Rodrigues, pianista.
Comecemos a viagem pelos espectáculos de teatro.
Cumprir as tabelas etárias
Porquê levar uma criança ao teatro da carochinha quando ela gosta de lanças, de
espadas? Madalena Victorino, directora do Centro de Pedagogia e Animação (CPA)
do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, diz que é essencial cumprir a tabela
etária. Ou seja, levar crianças de oito anos a espectáculos para crianças de
três não funciona.
E esta não é uma tarefa difícil. São raras as crianças que não estão despertas
para o teatro. Madalena Victorino diz que "a maioria dos pais leva os filhos ao
teatro para os entreter", mas que o teatro é mais do que isso. Interessam-lhe
"espectáculos que se fazem com a mente e com o corpo", escolhe peças para
emocionar, assustar, fazer rir, ajudar a crescer. "O teatro é um lugar de
reinterpretação do mundo. Muitas vezes é um equipamento de salvação: as crianças
debatem-se com problemas e, ao verem um espectáculo que os aborda, percebem que
ele não é só seu."
A diversidade de universos e linguagens é a palavra chave do CPA. Os
espectáculos estão em salas pequenas: a intimidade e a envolvência são
essenciais. Um mau espectáculo compete com a televisão. "No bom teatro há um
jogo de descobertas, de decifração. Por isso às vezes os miúdos ficam cansados
depois de um espectáculo: não estão habituados a esperar."
E tome nota: dificilmente um adolescente que não tenha ido ao teatro durante a
infância quererá fazê-lo quando se está a autonomizar dos pais, por volta dos 10
anos. O que se pode fazer? "Não se deve obrigar. Deve-se ter proporcionado a
experiência a partir dos três anos. Há coisas que não se podem recuperar. O
importante é que o gosto seja introduzido cedo para mais tarde ser uma opção
própria."
Ler tudo, sem o eruditismo
Ler o mais cedo possível. Dar bons ou maus livros, não interessa. O importante é
que as crianças experimentem a aventura de um livro. Não interessa o que se lê,
interessa é ler e perceber que num livro se encontram histórias, ideias e
prazer, diz Henk Kraima, director da Fundação para a Promoção Colectiva do Livro
Holandês (CPNB), que esteve em Portugal, em Novembro, no Instituto Português do
Livro e das Bibliotecas (ver entrevista na próxima página). "Pode-se começar a
falar de qualidade a partir dos 15, 16 anos, explicar porque é que Shakespeare,
Pessoa, Saramago são importantes. Antes disso, é difícil."
Transmitir a ideia de livro como partilha de afectos e não apenas como uma
decifração mecânica de palavras é essencial, defende José António Gomes,
director da revista "Malasartes - Cadernos de Literatura para a Infância e a
Juventude". "Depois, é fundamental facultar o contacto com toda a variedade de
livros. Deixemo-nos de frases feitas como: 'Ler é um prazer.' Os prazeres não se
impingem."
E pode-se dar a ler Camões ou Pessoa em qualquer nível de ensino, acredita Rui
Canário, professor de Sociologia da Educação, que prepara a comunicação
"Trabalho escolar: entre o enfado e o prazer" (para apresentar num encontro da
Associação de Professores de Português em Janeiro). "Tudo depende dos textos que
se escolhe e da forma como são dinamizados." E deve-se incentivar a escrita: "A
leitura e a escrita são ferramentas que não se limitam ao processo cognitivo, há
uma componente afectiva, uma envolvência completa. Depois de as crianças
sentirem isso, podemos então levá-las à descoberta dos autores do nosso
património cultural."
Ouvir e ver ao colo dos pais
Num concerto ou num espectáculo musical para crianças é importante que as
músicas sejam cantadas, que a voz humana esteja próxima, que exista interacção.
As crianças gostam do contacto táctil e escrever qualquer coisa na mão delas
para que se sintam parte de um clube, integrar elementos repetitivos nas músicas
em que possam participar - no fim de uma frase musical, baterem palmas -,
introduzir diversificação, são alguns truques que se podem usar. Tão importante
quanto a qualidade musical é a qualidade relacional que se estabelece entre
criadores e crianças, sublinha Helena Rodrigues, psicóloga, pianista e autora do
projecto "Desenvolvimento musical na primeira infância", financiado pela
Fundação Calouste Gulbenkian, a decorrer desde Outubro na Universidade Nova de
Lisboa, com pais e crianças entre os zero e os dois anos.
Diz que mesmo em casa há várias estratégias a que se pode recorrer facilmente,
desde que tenha tempo: "As crianças ouvem um disco ou vêem um vídeo de maneira
completamente diferente se estiverem ao colo dos pais, mesmo em silêncio. É
muito importante partilhar a experiência. A arte tem a ver com comunicação, com
partilhar a alma que se expõe e revela. E por aí passam as emoções, pensamentos,
intuições, pressentimentos mais ocultos, o que não é verbalizado."
Um aviso para pais ansiosos: "A criança só deve aprender música quando já sabe
falar musicalmente. Só aprendemos a escrever e a ler quando entendemos a
linguagem e sabemos improvisar. Há um tempo para brincar, explorar os sons,
adquirir vocabulário musical, e há outro tempo para se saber decifrar uma pauta.
A música é uma arte auditiva, não visual. Se não se desenvolve bem a audição
antes de aprender a ler a pauta, há coisas que vão ficar por desenvolver. Não há
idades certas para começar a aprendizagem formal da música: uma criança de
quatro anos pode já estar preparada e uma de 10 não."
Todos os conceitos se podem debater
À partida parece impossível que uma criança se interesse por um Museu de Arte
Contemporânea. Mas desenganem-se aqueles que acham a arte abstracta, por
exemplo, inacessível a uma criança. "As crianças expressam-se mais do que os
adultos e de várias formas. Fazem muitos gestos, falam, sentam-se no chão,
escorregam... Para elas tudo na vida é novo. Para as crianças, muitas das obras
abstractas são figurativas. Fazem um desenho e dizem: 'Aqui está a minha mãe ao
telefone.' Nós olhámos e... não vemos", diz José Maia, monitor do serviço
educativo do Museu de Serralves.
Todos os temas e conceitos se podem debater com crianças, desde que se use a
linguagem adequada, defende Susana Gomes da Silva, consultora e responsável pela
programação e coordenação do Sector de Educação do Centro de Arte Moderna da
Fundação Calouste Gulbenkian. "As crianças têm um potencial enorme. Queremos que
a aprendizagem seja feita de uma forma lúdica, que eles sejam também
participantes."
No seu gabinete, há inúmeras caixas cheias de objectos e muitos deles são
recriações de elementos presentes nas obras em exposição: um pente, uma mancha
de cabelo, uma forma de sapato...
Ponto fundamental: "Não é preciso ver tudo: uma visita é mais enriquecedora
quando se selecciona aquilo que se quer ver." Outro ponto fundamental: "A
construção de memórias em conjunto. A vinda ao museu é uma experiência que vai
ter consequências e efeitos a longo prazo. Assumimos que a transmissão de
conhecimentos é o menos interessante. Por isso trabalhamos a experiência em
construção."
Numa das visitas que Susana Gomes da Silva orienta, para alunos do 2º e 3º
ciclos sob o tema "Olhar, Ver, Interpretar", as crianças são confrontadas com
noções como "interpretação". Para perceberem que o seu papel é fundamental na
obra de arte. "Defende-se a ideia de aprender, fazendo e pensando sobre o que
faço. Por isso insisto tanto em lançar hipóteses, problemas. Passar materiais de
apoio para a mão dos visitantes faz com que se sintam mais seguros, mesmo os
adultos. Tento sempre partir do que me dizem como matéria-prima para a
discussão."
E se é essencial transmitir a ideia de que a interpretação é uma construção
pessoal, a partir dos 10 anos pode-se sublinhar que não é apenas fruto da
imaginação e que é importante validar as opiniões.
O confronto com a arte nas visitas familiares também serve para os pais ouvirem
o que os filhos têm para lhes dizer. Coisas simples como levar um caderno de
viagem onde se vai escrevendo pode transformar uma ida a um museu num momento de
partilha. "O contacto com a arte desde pequeno faz com que as crianças encarem
esse universo como algo normal e não como algo transcendente a que não
conseguimos aceder. E é importante mostrar que nos podemos relacionar com coisas
que não têm um sentido prático como a arte."
Helena Rodrigues sublinha: "Detesto quando dizem que arte torna as pessoas
melhores: não sabemos se isto é verdade. Às crianças, ajuda-as a entrar no mundo
da imaginação, a encontrar uma maneira de comunicar consigo próprias. É na
infância que se aprende mais e melhor. Pode-se coleccionar um vocabulário para
mais tarde expressar, fruir. O criador é também o leitor, o ouvinte... E é
crucial alcançar estas bases na altura certa."
Gisela Cañamero, do Arte Pública - companhia sediada em Beja desde 1991 que tem
apostado na formação de públicos numa zona onde se estão a desenvolver hábitos
culturais - diz: "A escolarização no ensino oficial é manifestamente
insuficiente. Na esmagadora maioria, programas e professores sofrem de déficit
de intervenção criativa com manifesta incapacidade para a integração de saberes
e áreas disciplinares e até da transformação do erro e do acaso em factores de
aprendizagem."
A dança está a dar os primeiros passos na criação para a infância:
Madalena Victorino convidou Clara Andermatt, Aldara Bizarro, João Galante e
Teresa Prima para criarem um espectáculo de dança integrado no projecto
"Percursos". Aldara Bizarro apresentará "O Poço", no CCB, a 23 de Janeiro.

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