Público - 28 Dez 02

"Para Que Todas as Crianças Tenham a Sua Família"
Por SÓNIA BALASTEIRO

Porque por vezes "qualquer coisa" pode restituir a esperança aos pais, a associação Crianças Sem Fronteiras surgiu para dizer que existem caminhos alternativos ao internamento de menores em instituições. Manter as famílias unidas é a filosofia que dá força a uma responsabilidade sem prazo de validade

Quando olha para a "senhora" que trouxe os presentes, o Daniel ri. Ri muito e não diz nada. A voluntária da associação Crianças sem Fronteiras trouxe dois brinquedos: um para o Daniel e outro para a sua irmã, de pouco mais de dois anos. A menina, felicíssima, recusa falar. Apenas estende as mãos às visitas.

Duas crianças pequenas e um rapaz vivem com a mãe, numa casa onde existe uma minicozinha e dois quartos. Um é pequeníssimo. Não existe uma mesa, nem um fogão para cozinhar. No quarto grande, dois colchões sobrepostos
improvisam uma cama para a mãe e para os dois mais novos. Há algum tempo, "Muriel" (nome fictício) pediu à assistente social que trabalha com a associação Crianças Sem Fronteiras para lhe "levar as crianças para alguma instituição". Mas não foi isso que a voluntária fez. A associação com que trabalha oferece alternativas ao internamento de menores em instituições. Apoiando, evitando o desmembramento das famílias, "reabilitando as suas capacidades" para criar os filhos. Aceitando e mantendo essa responsabilidade.

Hoje, a voluntária Marina traz-lhes dois berços e roupas. Faltam as fraldas. "É que o infantário exige que as crianças levem mudas, para as aceitar", explica. Se os mais pequenos não estiverem no infantário, a mãe não pode trabalhar. Marina pergunta a Muriel de que precisam mais. "De tudo, de tudo. Não temos nada..." Há ainda o problema do espaço: um dos berços tem de voltar para trás. Muriel diz que precisam de mudar de casa. Para onde?

Na hora da partida, a menina de sapatos novos despede-se, mas da mãe. Quer ir com Marina e com as três senhoras que estão com ela. Chora. Ruth van Veggel, presidente da associação, diz que "é a hora do mais difícil", de ir embora. No caminho de volta para Lisboa, fala-se das crianças. Ruth diz a Marina para comprar uma "boneca grande", que prometera à menina, e as fraldas. A voluntária diz que Muriel está melhor, que já não parece tão desesperada. Vai voltar, provavelmente ainda muitas vezes.

A solidariedade social é "assumir uma responsabilidade" e não há um prazo que dite o tempo que as famílias em risco precisarão de apoio. Essa é a linha de acção que a associação pretende cumprir: ajudar o tempo que for necessário, "acalmar o desespero". "As mães ficam esgotadas. Uso a metáfora do camelo: aguenta tudo, mas pode ser preciso apenas uma palha para o deitar abaixo", explica Daniela. A assistente social acredita que é necessário restituir a esperança a pais necessitados.

"A primeira coisa em que se pensa é em tirar as crianças da família", critica, comentando com o provérbio "quando o único instrumento de que dispomos é o martelo, todo o problema é prego: mas existem outros instrumentos". A Crianças Sem Fronteiras actua junto das famílias preventivamente e intervém em situações de crise. "Sai mais barato do que a alternativa comum", consideram. Pretendem interromper "círculos viciosos". Porque "quando intervém um organismo para retirar a tutela aos pais é muito difícil parar o processo".

"Crianças Sem Fronteiras é... ajudar" Em breve, irão visitar uma outra família: a mãe é portadora do vírus HIV. Tem dois filhos. A acção da associação passa por preparar as famílias para lidar com processos difíceis. Agora, é preciso assegurar que as crianças fiquem com a mãe. Vão ser entregues mobílias, entre outras coisas. Quando a mãe faltar, será necessário garantir o seu acolhimento no seio de outra família - o amor parental é muito importante. "Damos preferência a famílias já com filhos, que já tenham o desejo de paternidade satisfeito. As pessoas, quando pensam em cuidar de crianças, pensam em adopção, mas isso é o fim da linha. Há a tutela, a guarda, por exemplo. O que é necessário é cuidar", considera Daniela.

"Querer ajudar as crianças" foi o que levou Ruth van Veggel, há cerca de um ano e meio, a decidir avançar com o projecto, singular em Portugal. A associação Crianças Sem Fronteiras começou a intervir recentemente junto das famílias. "Andámos um ano a partir pedra", explica a assistente social. A apresentação da associação foi feita a 28 de Janeiro. Há pouco tempo, foi feito um jantar para angariação de fundos.

A associação não se limita ao apoio financeiro a pais em risco de perderem os seus filhos. "Ajudamos no que for necessário: comida, roupas, mobílias, apoio jurídico, em caso de emergência" são apenas alguns exemplos. "Muitos dos casos chegam-nos através da assistente social", conta Ruth van Veggel.

Com 27 associados, a Crianças Sem Fronteiras espera agora ser considerada Instituição Particular de Segurança Social (IPSS) pelo Estado. São uma organização não governamental, cujos apoios lhes chegam através de pessoas conhecidas, amigas. Pretendem "envolver a sociedade civil". "Por exemplo: entramos em contacto com uma empresa e dizemos o que uma família necessita. Convidamo-la a 'apadrinhar' essa família", explica a presidente da associação. Porque Crianças Sem Fronteiras é...ajudar."