Nota do Conselho Permanente da
CEP
sobre o problema da Pedofilia
1 – A sociedade portuguesa
ficou, nos últimos dias, chocada e surpreendida, pela denúncia feita pelos
Meios de Comunicação Social, de casos de abuso sexual de crianças e outros
menores. Sem querer avolumar a avalanche de reacções que essas informações
provocaram, não podemos deixar de dizer uma palavra, que junte a nossa voz a
todos quantos manifestaram repúdio por essas práticas e sirva de orientação
para os cristãos, perante problema tão grave e delicado.
A primeira palavra é de condenação moral, clara e inevitável, sobre todos os
actos de violência e ofensa à inocência das crianças. Trata-se de pecados onde
a maldade dos homens atinge manifestações hediondas, que podem ser sinal de
doença grave da sociedade como um todo. Lembramos aqui a frase dura de Jesus:
“aquele que receber uma criança, como esta, por causa do meu nome, é a Mim que
recebe. Se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em Mim, melhor
seria que lhe pendurassem ao pescoço uma mó pesada e o precipitassem nas
profundezas do mar” (Mt. 18,5-6). É de notar que Jesus se refere, não apenas
às crianças, mas a todos aqueles a quem a fé restituiu um coração de criança.
Apelo à serenidade e à objectividade
2 – Nesta circunstância, de certo modo dramática, apelamos, antes de mais, à
serenidade. A sociedade não é toda pedófila. Sabemos por experiência que,
enquanto estivermos neste mundo, a construção de uma sociedade digna do homem
tem de integrar o mal e o pecado. E o equilíbrio da sociedade manifesta-se,
também, na capacidade de discernir, identificar com objectividade e tentar
corrigir as desordens morais e sociais. Neste momento não podemos colocar sob
suspeita todos aqueles e aquelas que, nas famílias, nas escolas e noutras
instituições, dedicam o melhor das suas vidas às crianças. Para todos eles
vai, neste momento, a nossa solicitude e solidariedade.
Para isso é necessário cultivar a objectividade, nas denúncias, na descrição
dos problemas, na identificação dos responsáveis. Toda a suspeita,
objectivamente fundada, deve ser investigada por quem deve e sabe fazê-lo. Não
se pode confundir análise social com investigação criminal, nem identificar o
simples “parece que”, com a denúncia de um crime. Marcam-se pessoas,
destroem-se vidas, comprometem-se instituições. Num Estado de Direito a
investigação criminal tem a sua metodologia própria e a confidencialidade como
critério; e os presumíveis culpados têm direito a ser considerados inocentes
até serem julgados, e a sentença judicial “transitar em julgado”.
Neste momento grave da nossa sociedade atrevemo-nos a pedir aos Meios de
Comunicação Social que, na sua legítima função de informar, identificar e
denunciar, dêem agora o seu contributo específico para construir esse ambiente
de objectividade e serenidade.
A complexidade do fenómeno
3 – Especialistas autorizados têm chamado a atenção, nos últimos dias, para a
complexidade do fenómeno da chamada pedofilia. Nele se entrecruzam
desequilíbrios de foro psiquiátrico, de natureza patológica, com a maldade
dura e crua de desfrutadores de crianças e adolescentes, quer em manifestações
de uma sexualidade desregrada ou de ganância sem escrúpulos, que leva ao
tráfico de crianças para fins eróticos. Não se podem equiparar estas agressões
graves, de natureza criminosa, a outros fenómenos, como manifestações menos
equilibradas de afectividade ou as liberdades sexuais de adolescentes, que
podem e devem ser integradas e corrigidas pela atitude atenta e ajustada dos
educadores. Tudo isto exige, isso sim, que o Estado, a Igreja e outras
Instituições, invistam na selecção e formação dos educadores, professores,
monitores e pedagogos, sacerdotes e catequistas. Trabalhar com crianças não
pode ser, apenas, um emprego. É uma missão, que supõe equilíbrio humano,
preparação pedagógica, apreço pela dignidade de uma criança. Todos aqueles e
aquelas que trabalham com crianças, têm de merecer a confiança da sociedade. A
sua remoção, quando, claramente, se mostrem indignos e desajustados, tem de
ser simples e expedita.
De qualquer modo, em todas as circunstâncias, prevalece para todos o dever de
proteger as crianças. Que quem é doente seja forçado a tratar-se, quem é
culpado, seja julgado e punido, que quem erra, seja ajudado a corrigir-se.
Repensar a sociedade
4 – Temos de reconhecer que este fenómeno, pelas dimensões que aparentemente
adquiriu e pela gravidade de que se reveste, nos põe o problema da orientação
da sociedade como um todo. Ele denota uma desorientação ética de perda de
valores e uma permissividade de costumes que encontram aí uma expressão
dramática, mas que atingem toda a sociedade como ambiente de vida. Os delitos
perpetrados exigem, sem dúvida, investigação e repressão criminal. Mas isso
não resolve o problema na sua raiz. Uma luta, a longo prazo, contra estes
comportamentos desviados, trava-se no campo da educação e da cultura. É
urgente repensar o quadro de valores inspiradores do nosso sistema educativo e
social. Não é possível, por um lado, defender a liberdade de costumes, sem
limites, em aspectos tão sensíveis da vida humana, como a sexualidade e evitar
as suas manifestações desregradas. Não se trata, apenas, de evitar o crime; é
preciso comunicar um sentido nobre e exigente da liberdade e da vida.
As pessoas e as Instituições
5 – Não pode deixar de nos preocupar o facto de a denúncia de alguns casos de
pedofilia, confirmados ou simplesmente suspeitados, lançarem a desconfiança
sobre Instituições respeitáveis, com créditos confirmados na dedicação às
crianças em situações sociais mais difíceis, tais como a Casa Pia e as Casas
do Gaiato. Não podemos esquecer que as crianças que estas instituições
recebem, tantas vezes abandonadas, sem família ou em situações sociais
degradadas, não foram estas instituições que as inventaram, foi a sociedade
que as produziu. Nem as famílias nem nenhuma instituição, por mais respeitável
que seja, estão livres de casos destes. Compete-lhes superá-los na rectidão e
generosidade de um projecto educativo e tomar corajosamente as medidas
exigidas para essa superação. Convidamos toda a sociedade, neste momento
difícil de sofrimento, a rodear de carinho e solicitude estas Instituições, às
quais milhares de crianças e toda a sociedade, muito devem.
Para os responsáveis e educadores da Casa Pia vai, neste momento, a nossa
saudação amiga. Tudo faremos, sobretudo através das capelanias, para os ajudar
a continuar a cumprir a sua nobre missão, corrigindo, corajosamente, o que não
estiver certo.
Dirigimos uma palavra muito especial de solidariedade fraterna e solicitude
pastoral, às Casas do Gaiato e à obra dos Padres da rua, também eles a sofrer
com as primeiras denúncias de problemas nessas instituições, tão queridas de
todos os católicos de Portugal. Pensai como reagiria o Padre Américo numa
situação semelhante: não teria medo da verdade, tentaria resolver o problema
dentro do dinamismo da sua pedagogia e tudo faria para defender os seus
rapazes. Como obra da Igreja que é, uma Casa do Gaiato tem de ter uma
vigilância redobrada na defesa das crianças, um critério exigente na escolha
dos educadores, a persistência em criar aquele clima alegre e sadio a que nos
habituaram e que há-de ajudar a resolver os problemas que possam surgir. Se há
atitude que um pedagogo deve ter é a coragem de corrigir e mudar, sempre que a
evolução do tempo e o bem dos educandos o exigirem.
Neste momento difícil queremos dizer-vos que os vossos bispos estão convosco,
para defender a originalidade pedagógica do Padre Américo, melhorando-a e
adaptando-a às novas exigências dos tempos.
6 – Nesta quadra natalícia colocamos aos pés da Mãe de Jesus todas as nossas
crianças, todas as famílias, comunidade de vida onde elas podem crescer, sem
ameaças nem agressões, o lar onde aprendem a sorrir, e todos aqueles e aquelas
que consagram as suas vidas à educação das crianças. A todos desejamos, neste
momento conturbado, a serenidade e a alegria da esperança.
Fátima, 10 de Dezembro de 2002
