Público - 18 Dez 02

Um País Entregue Aos "Bibis"
Manuel Brás

Há coisas difíceis de entender. A menos que não se queira ser coerente nem consistente.

O triste caso que trouxe a prestigiada Casa Pia para as páginas de jornais e que continua a alimentar profusamente telejornais é um desses exemplos.

De início todos aprovaram e agradeceram que a comunicação social fizesse publicidade ao assunto, e que aí se discutissem as responsabilidades e a culpa. Mas agora já há quem ache que a comunicação social se devia calar. Será isto possível, atendendo ao que a própria comunicação social nos tem revelado da sua natureza? É que o seu trabalho só acaba, provavelmente, quando não houver mais histórias para expor. Não será estar a pedir-lhes demais?

A própria natureza dos acontecimentos gera algumas questões paradoxais. No fundo, o que ali está em causa e que, muito justamente, se condena é o aliciamento e a consumação de práticas homossexuais por parte de um adulto sobre crianças durante anos a fio. Mas essa condenação não será contraditória com a aceitação social das práticas homossexuais como uma opção igual a outras? É certo que o exercício do aliciamento e desse tipo de práticas, ainda por cima forçado, sobre crianças o torna especialmente grave e que cada adulto se pode entregar ao que muito bem entender com outros adultos que livremente estejam dispostos a isso. Mas como é que se pode entender que numa sociedade em que a homossexualidade tende a ser propagandeada e vista como mais uma opção, coisa banal, as pessoas depois se espantem por haver quem tente a sua "sorte" com seres mais desprotegidos e ingénuos como as crianças? Não será que a apologia da homossexualidade não abre as portas para esse tipo de actos com menores?

Outro exemplo semelhante a este prende-se com a prostituição infantil. O facto de nela se envolverem crianças e jovens torna essa actividade indubitavelmente mais grave e condenável. Mas haverá alguém tão ingénuo que julgue que a prostituição infantil não tem nada a ver com a de adultos? Ou será que há uma prostituição má e uma boa? Será possível condenar a prostituição infantil e ao mesmo tempo encolher os ombros à de adultos e permitir que as suas redes avancem à custa da moleza com que têm sido toleradas?

Entretanto, o PÚBLICO dá voz, na edição de 9 de Dezembro de 2002, a um grupo de "empresários da noite" minhota que pretende ver legalizado o "negócio" da prostituição. Prostitutas à parte, que são a parte mais frágil e desprotegida do "negócio", para o qual são aliciadas e do qual muito dificilmente podem sair, o que estes "empresários" pretendem é ser tratados como organização de bem, e de direito, que não são. Poderá o Estado comprometer-se com organizações e redes deste tipo e cobrar impostos sobre rendimentos provenientes de uma actividade que se sabe de ciência certa ser a exploração de mulheres?

O que esses "empresários" pretendem é criar uma estrutura de direitos perante o Estado. É nisto que se transformam as redes de prostituição ao verem legalizada a sua actividade. O que significaria conceder direitos à actividade de exploração de mulheres, precisamente uma das novas escravaturas.

Não deixa de ser tristemente caricato que tais "empresários", com um invulgar cinismo, critiquem algumas medidas de fiscalização relativamente à imigração ilegal que alimenta as suas redes. Já se vê porquê e para quê.

Voltamos ao sofisma do costume: que a legalização das actividades de exploração humana contribui para as atenuar e mesmo erradicar. Mas o que se esquece é que ao legalizar esse tipo de redes o Estado está a considerá-las estruturas merecedoras de crédito e de direitos, como qualquer empresa comercial. E, ao considerá-las como tal, compromete-se. E ao comprometer-se está nas mãos delas.

Que essas mulheres individualmente possam beneficiar de apoio sanitário e psicológico que as ajude a sair desse mundilho e a recomeçar uma nova vida é algo que se deve pôr em prática sem descanso nem cansaço. Porque esse é mesmo um mundo cão. Agora, as redes que dominam o "negócio" não merecem a mínima compaixão.

Não se trata já de impedir que este país seja entregue aos "Bibis", porque isso já está há muito tempo. Trata-se somente de os obrigar a retirar. Mas para isso é preciso combater. E aí a situação é esta: aqueles que querem não podem; os que podem não querem.

Lisboa