Lei e a obrigatória brandura dos Magistrados António Cluny
presidente do Sindicato dos Magistrados do
Ministério Público
Os problemas de segurança que enfrentamos estão,
antes do mais, ligados ao tipo de sociedade que se
construiu nos últimos anos. À insegurança das ruas
somam-se muitas outras: a precariedade do trabalho,
o desemprego, a saúde, a redução de reformas, as
péssimas soluções urbanísticas, os graves problemas
da escola pública. Tudo, em conjunto, vem
desestruturando a sociedade, os valores de
responsabilidade e a solidariedade social, o brio
profissional, a possibilidade da sobrevivência das
famílias (quaisquer que elas sejam), enfim, o que
permite a segurança de uma vida social responsável,
pacífica e movida por valores de progresso.
Difícil é, por isso, reduzir as causas da actual
crise de segurança às reformas das leis penais:
Código Penal, Código de Processo Penal e Lei da
Política Criminal.
É verdade que algumas foram ditadas mais pelos
preconceitos exasperados que certos processos
judiciais provocaram, do que fundamentadas em
estudos rigorosos.
Mas, até pela falta desses estudos sobre a
delinquência, não é honesto dizer que a crescente
ocorrência de crimes graves, violentos e, nalguns
casos, sofisticados é uma consequência directa
daquelas reformas.
Já parece, contudo, correcto afirmar, sem riscos de
demagogia, que o sentimento de insegurança, de
impunidade, de desmotivação das forças de segurança
e de inutilidade do sistema judicial tem muito a ver
com os efeitos daquelas reformas.
Poder-se-ia dizer ainda que não era possível prever
tais efeitos. Mas muitos práticos, académicos,
analistas e jornalistas, alertaram, em tempo, para
os riscos evidentes que elas comportavam.
O resultado querido e aplaudido pelo Governo foi, no
entanto, alcançado: a redução em mais de 50% dos
presos do País.
Mais do que através das normas do Código de Processo
Penal esse resultado foi, contudo, obtido por via da
interpretação legal obrigatória de tais normativos
imposta ao Ministério Público pela Lei da Política
Criminal.
Só quem não se lembrar da polémica então ocorrida e
não tiver lido os artigos 13. º e 15.º dessa Lei,
que ordenam ao Ministério Público que, sempre que se
vislumbre uma mínima hipótese legal de o fazer, não
requeira condenações em penas de prisão efectiva ou
a prisão preventiva dos delinquentes, poderá ficar
espantado com o que digo. Essa foi contudo, até
agora, para o Ministério Público, a interpretação
legal obrigatória do Código de Processo Penal.
Foi por causa dessas excêntricas, rígidas e
desadequadas normas de interpretação desse Código
que muitos delinquentes foram sendo sucessivamente
soltos, apesar de, alguns, terem sido detidos mais
de uma vez por semana pela prática dos mesmos
crimes. Neste aspecto da reforma, o cerne da
questão.
Foi essa orientação do legislador que, numa
interpretação arrojada do artigo 20.º da mesma lei,
o procurador-geral da República, com aplausos
gerais, teve agora necessidade imperiosa de revogar.
O problema da incongruência destas leis e dos
efeitos que elas potenciam não se resume apenas ou
sobretudo à aplicação restritiva da prisão
preventiva.
Ela reside, essencialmente, no facto de nunca se
terem criado verdadeiras condições legais e de
organização judiciária para usar, com amplitude
devida, as formas simplificadas de processo que
permitiriam, em alternativa à prisão preventiva,
fazer julgar e condenar em tempo útil os
delinquentes que vão sendo detidos pelas polícias na
sequência dos crimes que cometem. É isso que, para
além dos processos sumários, acontece com sucesso em
outros países europeus.
Os delinquentes acabam, assim - eles próprios -
inexplicavelmente soltos e crescentemente
convencidos da sua impunidade.
Nisto consiste parte da incongruência da reforma do
nosso sistema penal e judiciário. Aqui, mais do que
no agravar de penas e pressupostos da prisão
preventiva, residem as causas de muita insegurança,
de muita impunidade e do crescente descrédito da
autoridade do Estado.
Mas, note-se: nem o Ministério Público nem os juízes
são órgãos de segurança. Nunca, apesar dos apelos
que se façam à sua cooperação com as polícias e os
órgãos do poder político dela encarregados, as suas
funções devem ser confundidas com as daqueles
órgãos. Aí a necessária limitação do seu contributo.
Tal confusão, de resto, subordinaria os valores da
justiça aos valores da segurança e isso é
incompatível com os valores do Estado de direito e
da democracia.