A toxicodependência e a profecia de Goethe Ana Vicente e Maria João Sande Lemos
A inverosímil recuperação de cerca de 600.000
toxicodependentes dá uma imagem pateticamente
falaciosa da realidade
No passado dia 17 de Agosto, o JN fez referência, em
manchete, na primeira página, que "Meio milhão
recupera das malhas da droga" divulgando, de forma
estranhamente apressada, o resultado do "II
Inquérito ao consumo de substâncias psicoactivas na
população portuguesa" um "estudo ainda em
observação".
Essa inverosímil notícia, da fantástica recuperação
de cerca de 600.000 toxicodependentes, tentando
obscurecer a triste realidade do aumento para o
dobro do número de dependentes de drogas, deu uma
imagem pateticamente falaciosa da realidade e
ludibriou milhares de leitores já que, quando lemos
aquele título, somos induzidos a acreditar que mais
de meio milhão de toxicodependentes se trataram e
curaram.
Atendendo à reconhecida dificuldade em mobilizar a
pessoa toxicodependente para o tratamento e ao facto
de o número de doentes inscritos nos centros de
tratamento do IDT rondar os 70.000, perguntamo-nos
como é possível o número apresentado?
Partindo do fictício pressuposto que o processo de
recuperação decorreu correctamente, ou seja, nas
dimensões física, psíquica e social ou, por outras
palavras, se esse número de pessoas se tratou e
curou do seu problema de toxicodependência, então,
dos 9,5 milhões que constituem a população
portuguesa, 5% desta seria constituída por
toxicodependentes recuperados.
Sendo a taxa habitual de sucesso na recuperação
deste tipo de problema, na melhor das hipóteses, da
ordem dos 30%, isto quereria dizer que Portugal
teria mais de dois milhões de toxicodependentes,
cerca de 1/5 da sua população, para só falar dos
inscritos o que apesar da política vigente na área
estar longe de ser a melhor, está a grande distância
de ser verdade. A ser assim, Portugal deveria
inscrever rapidamente o seu nome no Guinness!
Se juntarmos a tudo isto, o relatório resultante da
última "Auditoria a programas de tratamento e de
reinserção social no âmbito das políticas da luta
contra a droga e a toxicodependência" feita pelo
Tribunal de Contas ao IDT e que refere que "Na área
do tratamento encontravam-se previstos cinco
objectivos operacionais e treze acções/ actividades,
das quais quatro não tinham metas claramente
quantificadas. Das treze acções previstas apenas
foram realizadas seis (total ou parcialmente)",
então, a nossa perplexidade é total. Cita ainda a
peça que, "Nos últimos seis anos, mais de meio
milhão de portugueses passaram a
ex-toxicodependentes,".
Ficámos assim a saber que, quem tenha consumido
mesmo que só uma vez (30,6% dos inquiridos
consumiram 1 vez), uma qualquer droga é, no entender
do IDT, toxicodependente, e se não o voltar a fazer,
é então promovido a ex-toxicodependente!
Se pensarmos que toda aquela imensidão de
portugueses consumiu drogas nos últimos 6 anos,
sendo que este número só faz referência aos
indivíduos que responderam ao dito inquérito, se lhe
juntarmos os não questionados que também as
consumiram, teremos que concluir que as estratégias
de Prevenção implementadas pelo IDT falharam
estrondosamente contrariando o optimismo do
Presidente do IDT " O número de desistentes
deixa-nos optimistas. Moderadamente, mas, sim,
optimistas".
Finalmente, uma referência a uma outra afirmação do
Presidente do IDT, citado na mesma peça: "Com
variações apenas do grau de toxicidade, todos somos
dependentes e potenciais dependentes."
Ainda que por duas razões diferentes parece-nos
particularmente grave aquela afirmação. Primeiro,
porque banalizando o consumo está paradoxalmente,
pelas funções que exerce - as de responsável (?)
máximo do IDT a incentivá-lo e segundo,
perigosamente, pelas consequências que tais
afirmações podem provocar nos ainda não dependentes.
Considerando que pela voz do Governo, através do IDT,
os dependentes são doentes, a ser verdade que "todos
somos dependentes e potenciais dependentes" então...
construam-se rapidamente novos hospitais. Com a
máxima urgência!
Falar com esta ligeireza e falta de rigor é um
desrespeito para com todos os técnicos que, no
sector privado ou nos Serviços do próprio IDT
tentam, de algum modo, tratar os toxicodependentes e
combater o fenómeno. Talvez seja esta postura pouco
ética que o IDT vem adoptando que está a levar os
seus técnicos, cada vez em maior número, a abandonar
os serviços.
Mas não podemos terminar sem fazer ainda referência
a uma "tirada" dum tal "mestre em psicologia de
drogas" (?), Agostinho Rodrigues, citado na peça,
que considera que há que integrar as drogas na nossa
cultura e "humanizar o consumo" juntando seguramente
a sua a outras vozes que, desconhecendo que
humanismo não envolve a facilitação do consumo de
substâncias tóxicas, anseiam pela abertura de, entre
outras formas de facilitação dos consumos, das
famosas salas de chuto.
Com espantosa presciência, Goethe antecipou a
"medicalização humanista" da vida. Ele escreveu: "Eu
acredito que no fim o humanitarismo triunfará, mas
eu receio que, ao mesmo tempo, o mundo se torne um
grande hospital, com cada pessoa a actuar como se
fosse enfermeiro da outra." Presidente da Direcção
da APLD