Aceitando a eutanásia, o Estado afirma que a
dignidade da vida humana pode perder-se em situações
de doença
Está em discussão na Bélgica um projecto de lei que
estende a descriminalização e legalização da
eutanásia a situações em que não há um pedido
consciente e explícito da pessoa em causa: crianças
e doentes mentais graves. O projecto pretende
instituir uma prática já aceite nos tribunais da
vizinha Holanda (onde essas situações não são
objecto de procedimento criminal, com a invocação de
razões de oportunidade), embora aí ainda não
consagrada legislativamente.
Este passo no sentido da extensão da licitude da
eutanásia suscita duas reflexões.
Por um lado, confirmam-se os temores de que uma
qualquer brecha no princípio da inviolabilidade da
vida humana conduza a um risco de derrocada, leve a
que se sigam ulteriores e mais graves violações
desse princípio, segundo a conhecida imagem da rampa
deslizante.
Por outro lado, torna-se mais evidente que na
eutanásia, ao contrário do que afirmam normalmente
os partidários da sua legalização, não está em jogo
apenas o respeito pela autonomia da pessoa ou uma
postura de neutralidade do Estado e da ordem
jurídica face às opções de cada pessoa sobre o
sentido e valor da sua própria vida. Com a
eutanásia, o Estado e a ordem jurídica afirmam o
desvalor de determinadas vidas humanas, afirmam que
a dignidade da vida humana não é uma sua qualidade
intrínseca, que nunca se perde, mas antes que essa
dignidade pode perder-se em situações de doença e
dependência.
Face a um pedido explícito de morte, nenhuma ordem
jurídica aceita indistintamente a licitude do
homicídio a pedido, nem o auxílio ao suicídio. As
que aceitam a licitude da eutanásia voluntária,
fazem-no não apenas em atenção ao valor da autonomia
pessoal (se assim fosse, aceitariam sempre o
homicídio a pedido e o auxílio ao suicídio), mas
também porque (neste aspecto, não pode dizer-se que
são neutras) reconhecem o desvalor da vida humana
marcada pela doença.
Com a legalização da eutanásia, não é apenas o
princípio da inviolabilidade da vida humana que se
sacrifica diante do respeito pela autonomia (o que
já é incongruente, porque o respeito pela autonomia
supõe o respeito pela vida, raiz da própria
autonomia: só quem está vivo pode ser livre), é
também o princípio da igual dignidade de todas as
vidas humanas, e da vida humana em todas suas fases,
que se sacrifica.
E isto torna-se ainda mais evidente perante este
projecto, que consagra a licitude da eutanásia na
ausência de um pedido explícito e consciente. Já não
pode falar-se, aqui, em eutanásia voluntária, nem em
respeito pela autonomia. Como já alguém escreveu,
"cai a máscara da eutanásia" como sinal de respeito
pela autonomia. Torna-se nítido, antes, que ela é
expressão da ideia de que há vidas desprovidas de
valor e dignidade (exactamente como se dizia na
legislação nazi sobre eutanásia). Vidas que são um
fardo para a sociedade - a mensagem não pode deixar
de ser assim entendida.
É certo que se diz ser o próprio bem das pessoas em
causa a justificar a eutanásia. Mas a vida é o bem
que é pressuposto de todos os bens terrenos. E é
óbvio que não é com a eutanásia que se combate ou
alivia a doença ou o sofrimento. Com a eutanásia,
desiste-se de combater ou aliviar a doença e o
sofrimento, elimina-se, pura e simplesmente, a
própria pessoa doente e que sofre. Juiz