Público - 12 Ago 05

 

Este silêncio de Verão

Pedro Strecht

Os silêncios são das maiores forças do crescimento psíquico. Representam tempos de pacificação, de resolução de conflitos, de reencontro, mas também são espaços de abertura, portas abertas à comunicação e ao preenchimento do que existe à nossa volta. Surpreendem. Marcam. Fazem adormecer, tanto quanto fazem sonhar

As férias de Verão são feitas de um tempo que muitas vezes traz as melhores recordações da infância e da adolescência. São momentos em que os mais novos podem ser verdadeiramente livres, longe do dia-a-dia escolar, da rotina das suas vidas, da falta de tempo e da impossibilidade tantas vezes sentida para cobrir espaços, distâncias, sobretudo as que dizem respeito a obstáculos que se opõem a uma maior proximidade ou facilidade de acesso a quem é verdadeiramente significativo do ponto de vista emocional ou afectivo. As férias de Verão são, por isso mesmo, um tempo fundamental de crescimento interior e quem conhece ou trabalha com crianças ou adolescentes sabe bem do que se fala; entre o final de Junho e o meio de Setembro, muita coisa pode mudar, e não é só aspecto exterior, quando rapazes e raparigas regressam mais altos, mais largos ou com feições diferentes; é também a vertente interior, a forma como tendem a sentir, a pensar e mesmo a agir, que ao mudar dá sinais do processo de crescimento psíquico.
Ora, uma das questões mais importantes nas férias grandes é a possibilidade de existência de tempo, quer para os mais novos, quer também para os mais velhos, tão afastados chegam por vezes eles a andar dos que tanto querem ou amam. Até porque o tempo, na infância ou na adolescência, diz respeito a uma medida muito mais ténue ou lenta, comparativamente à noção consciente dos mais crescidos; quem não recorda bem o quanto duravam estas férias quando era mais pequeno e como a noção do passar dos próprios dias se poderia reduzir a uma ideia muito vaga, perdida na sequência da segunda a domingo? Para muitos rapazes ou raparigas saudáveis, que vivem o tempo de Verão em descontracção e alegria, esta noção pode até estar completamente apagada, tal o aspecto inconsciente que assume.
Mas outro aspecto fundamental para o crescimento interior é o do silêncio. Ao longo de um ano de trabalho, escolar ou profissional, muitos dos mais novos (tal como muitos dos adultos, aliás) acumulam uma dose verdadeiramente excessiva de ruído nas suas vidas emocionais, muito dele perfeitamente dispensável e verdadeiramente extenuante para um bom equilíbrio psíquico. São alguns exemplos o ruído que a televisão ocupa em horas acumuladas atrás de horas, ou a Internet e os chats de conversação que preenchem espaços de comunicação entre os mais novos de uma forma avassaladora, ou a música que, por ser excessiva, nem chega a poder ser devidamente apreciada, e é preciso lembrar que agora há quase sempre música por todo o lado (e frequentemente muito má), música a dar na rádio, a sair dos walkman, em quase todas as lojas e, pasme-se, em muitos cafés de praia ou em ruas de pequenas aldeias ou vilas que assim esperam (diz-se!) atrair mais gente porque "o que é preciso é dar animação..." Como se a maioria das pessoas e, sobretudo de muita gente nova que preenche esses espaços, necessitasse de "ser animada", ou porque andasse, por oposto, desanimada, quer dizer, deprimida, triste, abalada, ou como se precisasse de um constante preenchimento interior para sentir, finalmente, que também está vivo, nem que seja pelo ruído que emite.
Se assim for, parece então que as coisas se passam justamente ao contrário do que dizia Sigmund Freud, o pai da psicanálise, e que os mais novos necessitam de viver em constantes níveis de excitação para sentirem que existem, quer individualmente, quer em relação com os outros. É o que muitos descrevem empiricamente pela "necessidade de adrenalina", expressa em atitudes ou movimentos "radicais", em que mais do que emoções se procuram apenas as sensações do momento. Por isso é que alguma função de "paraexcitação" psíquica se torna cada vez mais necessária, para que não exista uma invasão de ruído tão grande e que o espaço psíquico dos mais novos fique tão enormemente preenchido por... tão pouco. Aliás, muitos pais e adultos sabem bem disso, e é por isso que em férias tendem a desligar mais a televisão, a evitar telemóveis, a fugir do barulho e da confusão e, por oposto, a convidar indirectamente os seus filhos a conviver mais com os da sua idade em situações mais reais que virtuais, a optar pelo contacto com a natureza (praia incluída) e a usufruir de um tempo mais preenchido por silêncios.
Uma sobreexcitação rotineira dos nossos espaços psíquicos não permite a capacidade de absorver, traduzir e mentalizar muitas das experiências emocionais que vivemos. Por oposto, a possibilidade de existirem silêncios significa assim a mesma possibilidade de existirem espaços por preencher, momentos de porta aberta, não previstos ou previamente organizados, que constituem um enorme potencial de crescimento.
Todos os adultos recordam muitos dos bons momentos das suas férias de Verão. Foram sobretudo aqueles em que determinadas situações os marcaram, pela intensidade das experiências afectivas e emocionais vividas com quem os rodeava nessas alturas. Sabem também que esses momentos ficaram gravados nas suas vidas e que ainda hoje perduram, apesar de tudo ou contra tudo o que antes ou depois se viveu. E mesmo quando essas experiências foram feitas com ruído (uma festa à noite, qualquer coisa que alguém disse, uma música especial), o que marcou realmente transcendeu-o, e valeu pelo impacto que deixou na nossa vida psíquica: por exemplo, uma música que fica não é apenas ou só a melodia ou o artista de quem gostávamos, é sobretudo a interiorização de uma vivência plena de intensidade emotiva que só se afirmou porque para ela existia um espaço, quer dizer, um silêncio.
Os silêncios são uma das maiores forças do crescimento psíquico. Eles representam tempos de pacificação, de resolução de conflitos, de reencontro, mas também são espaços de abertura, portas abertas à comunicação e ao preenchimento de tudo quanto existe à nossa volta e não se pode controlar nem pré-conceber. Surpreendem. Marcam. Fazem adormecer, tanto quanto fazem sonhar. Revelam a capacidade de estar só, sem preenchimentos vazios ou hiperexcitantes que, em muitos casos de hoje, se constituem em verdadeiras agressões da vida mental dos mais novos. Representam a capacidade de ouvir, mais do que a de falar ou... escrever.
É muito importante que as férias de Verão possam marcar positivamente a vida das crianças e dos adolescentes, já que elas são, por excelência, um tempo onde não só isso devia ser possível, como, acima de tudo, permitido. Para que possam vir a ser significativamente preenchidas por bons e recordáveis momentos, há que saber cortar um pouco no ruído que constantemente cerca e invade o dia-a-dia de muitos dos mais novos. Para muitos, pode até custar, mas essa é seguramente a via para que as suas vidas possam marcar e serem marcadas por tudo aquilo que de bom têm e as cerca. Pedopsiquiatra

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