Este silêncio de Verão
Pedro Strecht
Os silêncios são das maiores forças do crescimento
psíquico. Representam tempos de pacificação, de resolução de
conflitos, de reencontro, mas também são espaços de
abertura, portas abertas à comunicação e ao preenchimento do
que existe à nossa volta. Surpreendem. Marcam. Fazem
adormecer, tanto quanto fazem sonhar
As férias de Verão são feitas de um tempo
que muitas vezes traz as melhores recordações da infância e
da adolescência. São momentos em que os mais novos podem ser
verdadeiramente livres, longe do dia-a-dia escolar, da
rotina das suas vidas, da falta de tempo e da
impossibilidade tantas vezes sentida para cobrir espaços,
distâncias, sobretudo as que dizem respeito a obstáculos que
se opõem a uma maior proximidade ou facilidade de acesso a
quem é verdadeiramente significativo do ponto de vista
emocional ou afectivo. As férias de Verão são, por isso
mesmo, um tempo fundamental de crescimento interior e quem
conhece ou trabalha com crianças ou adolescentes sabe bem do
que se fala; entre o final de Junho e o meio de Setembro,
muita coisa pode mudar, e não é só aspecto exterior, quando
rapazes e raparigas regressam mais altos, mais largos ou com
feições diferentes; é também a vertente interior, a forma
como tendem a sentir, a pensar e mesmo a agir, que ao mudar
dá sinais do processo de crescimento psíquico.
Ora, uma das questões mais importantes nas férias grandes é
a possibilidade de existência de tempo, quer para os mais
novos, quer também para os mais velhos, tão afastados chegam
por vezes eles a andar dos que tanto querem ou amam. Até
porque o tempo, na infância ou na adolescência, diz respeito
a uma medida muito mais ténue ou lenta, comparativamente à
noção consciente dos mais crescidos; quem não recorda bem o
quanto duravam estas férias quando era mais pequeno e como a
noção do passar dos próprios dias se poderia reduzir a uma
ideia muito vaga, perdida na sequência da segunda a domingo?
Para muitos rapazes ou raparigas saudáveis, que vivem o
tempo de Verão em descontracção e alegria, esta noção pode
até estar completamente apagada, tal o aspecto inconsciente
que assume.
Mas outro aspecto fundamental para o crescimento interior é
o do silêncio. Ao longo de um ano de trabalho, escolar ou
profissional, muitos dos mais novos (tal como muitos dos
adultos, aliás) acumulam uma dose verdadeiramente excessiva
de ruído nas suas vidas emocionais, muito dele perfeitamente
dispensável e verdadeiramente extenuante para um bom
equilíbrio psíquico. São alguns exemplos o ruído que a
televisão ocupa em horas acumuladas atrás de horas, ou a
Internet e os chats de conversação que preenchem espaços de
comunicação entre os mais novos de uma forma avassaladora,
ou a música que, por ser excessiva, nem chega a poder ser
devidamente apreciada, e é preciso lembrar que agora há
quase sempre música por todo o lado (e frequentemente muito
má), música a dar na rádio, a sair dos walkman, em quase
todas as lojas e, pasme-se, em muitos cafés de praia ou em
ruas de pequenas aldeias ou vilas que assim esperam
(diz-se!) atrair mais gente porque "o que é preciso é dar
animação..." Como se a maioria das pessoas e, sobretudo de
muita gente nova que preenche esses espaços, necessitasse de
"ser animada", ou porque andasse, por oposto, desanimada,
quer dizer, deprimida, triste, abalada, ou como se
precisasse de um constante preenchimento interior para
sentir, finalmente, que também está vivo, nem que seja pelo
ruído que emite.
Se assim for, parece então que as coisas se passam
justamente ao contrário do que dizia Sigmund Freud, o pai da
psicanálise, e que os mais novos necessitam de viver em
constantes níveis de excitação para sentirem que existem,
quer individualmente, quer em relação com os outros. É o que
muitos descrevem empiricamente pela "necessidade de
adrenalina", expressa em atitudes ou movimentos "radicais",
em que mais do que emoções se procuram apenas as sensações
do momento. Por isso é que alguma função de "paraexcitação"
psíquica se torna cada vez mais necessária, para que não
exista uma invasão de ruído tão grande e que o espaço
psíquico dos mais novos fique tão enormemente preenchido
por... tão pouco. Aliás, muitos pais e adultos sabem bem
disso, e é por isso que em férias tendem a desligar mais a
televisão, a evitar telemóveis, a fugir do barulho e da
confusão e, por oposto, a convidar indirectamente os seus
filhos a conviver mais com os da sua idade em situações mais
reais que virtuais, a optar pelo contacto com a natureza
(praia incluída) e a usufruir de um tempo mais preenchido
por silêncios.
Uma sobreexcitação rotineira dos nossos espaços psíquicos
não permite a capacidade de absorver, traduzir e mentalizar
muitas das experiências emocionais que vivemos. Por oposto,
a possibilidade de existirem silêncios significa assim a
mesma possibilidade de existirem espaços por preencher,
momentos de porta aberta, não previstos ou previamente
organizados, que constituem um enorme potencial de
crescimento.
Todos os adultos recordam muitos dos bons momentos das suas
férias de Verão. Foram sobretudo aqueles em que determinadas
situações os marcaram, pela intensidade das experiências
afectivas e emocionais vividas com quem os rodeava nessas
alturas. Sabem também que esses momentos ficaram gravados
nas suas vidas e que ainda hoje perduram, apesar de tudo ou
contra tudo o que antes ou depois se viveu. E mesmo quando
essas experiências foram feitas com ruído (uma festa à
noite, qualquer coisa que alguém disse, uma música
especial), o que marcou realmente transcendeu-o, e valeu
pelo impacto que deixou na nossa vida psíquica: por exemplo,
uma música que fica não é apenas ou só a melodia ou o
artista de quem gostávamos, é sobretudo a interiorização de
uma vivência plena de intensidade emotiva que só se afirmou
porque para ela existia um espaço, quer dizer, um silêncio.
Os silêncios são uma das maiores forças do crescimento
psíquico. Eles representam tempos de pacificação, de
resolução de conflitos, de reencontro, mas também são
espaços de abertura, portas abertas à comunicação e ao
preenchimento de tudo quanto existe à nossa volta e não se
pode controlar nem pré-conceber. Surpreendem. Marcam. Fazem
adormecer, tanto quanto fazem sonhar. Revelam a capacidade
de estar só, sem preenchimentos vazios ou hiperexcitantes
que, em muitos casos de hoje, se constituem em verdadeiras
agressões da vida mental dos mais novos. Representam a
capacidade de ouvir, mais do que a de falar ou... escrever.
É muito importante que as férias de Verão possam marcar
positivamente a vida das crianças e dos adolescentes, já que
elas são, por excelência, um tempo onde não só isso devia
ser possível, como, acima de tudo, permitido. Para que
possam vir a ser significativamente preenchidas por bons e
recordáveis momentos, há que saber cortar um pouco no ruído
que constantemente cerca e invade o dia-a-dia de muitos dos
mais novos. Para muitos, pode até custar, mas essa é
seguramente a via para que as suas vidas possam marcar e
serem marcadas por tudo aquilo que de bom têm e as cerca.
Pedopsiquiatra