A "crise-surpresa" há muito anunciada Ana Fernandes
Após décadas de preços artificialmente baixos,
mercados distorcidos e uma procura crescente fizeram
explodir o caldeirão, só apanhando desprevenido quem
não quis ver o que fervilhava
Não foi por falta de aviso. O programa das Nações
Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) está a
alertar desde Junho de 2006 para o que se estava a
preparar. Ninguém ligou. Agora instalou-se o pânico
e muitas das medidas que estão a ser tomadas - ou
sugeridas - resolvem pouco. Pior: agravam os
problemas, como é o caso do encerramento de
fronteiras.
Boa parte da resposta está onde até agora ninguém
apostou: nos pequenos agricultores dos países
pobres. A crise tem apenas um lado positivo: exigir
que se volte a pensar e a apostar na agricultura.
Mas isto não muda o essencial: não há falta de
alimentos, há um problema de acesso a estes.
As causas estão diagnosticadas: uma curva ascendente
da procura devido ao aumento do nível de vida da
China e da Índia, que começou a introduzir carne na
sua alimentação, que não foi acompanhado pela oferta
por causa de anos climatericamente adversos. A isto,
acrescentou-se uma subida dos custos de produção por
causa do petróleo, da muita especulação e dos
biocombustíveis. "Foram os fundamentos do mercado",
sublinha ao PÚBLICO Abdolreza Abbassian, economista
da FAO.
Mas se foi o mercado a gerar a crise, não será ele a
resolvê-la. Primeiro porque na agricultura, nada
funciona do dia para a noite. No campo, as escalas
temporais são anuais. Não é uma fábrica que, de um
dia para o outro, consegue duplicar a produção para
responder à procura. Segundo algumas projecções,
para um aumento de preços de oito por cento, a
oferta sobe entre um e dois por cento.
Depois porque há poucos mercados tão distorcidos
como o dos produtos agrícolas. Os preços têm-se
mantido artificialmente baixos: de 1974 a 2005 os
preços reais caíram 75 por cento. Nos países ricos,
os agricultores têm sido subsidiados para que os
consumidores tenham acesso aos alimentos ao menor
preço. Nos países pobres, os preços foram também
controlados pelo poder político - para evitar
tensões sociais -, mas os produtores não foram
compensados.
Isto para além das barreiras e das tarifas que os
países ricos impõem às importações, que aumentaram
ainda mais a distorção.
Para este imenso caldeirão contribuíram ainda
políticas seguidas nos EUA e na Europa contra os
excedentes. As reservas têm vindo a cair e são a
única resposta imediata aos aumentos de procura.
Agricultura abandonada
Para agravar tudo, há anos que se sente um
desinvestimento na agricultura - os apoios a este
sector nos países em desenvolvimento são menos de
metade do que eram em 1984. Joachim Von Braun,
director do Instituto Internacional de Pesquisa
sobre Política Agrícola (IFPRI, na sigla inglesa)
lembra que a revolução verde dos anos 60 levou a
maior abundância de comida e mais barata, o que
beneficiou tanto agricultores como consumidores.
"Isto foi possível com grandes investimentos em
pesquisa agrícola e desenvolvimento", escreveu Von
Braun. "Infelizmente, a agricultura caiu na lista
das prioridades a partir dos anos 90 e agora estamos
a pagar por esses anos de negligência."
A produção era abundante e os problemas da fome
deviam-se sobretudo a problemas de acesso aos
alimentos e não à sua escassez, pelo que a
agricultura deixou de ser uma prioridade. Isto ainda
é verdade, pois a produção triplicou nos últimos 30
anos. Mas, se na Europa e nos EUA, os aumentos da
produtividade já não são o que foram no passado e
há, sobretudo entre os europeus, resistência aos
transgénicos, nos países pobres há um enorme
potencial para explorar, caso se desenvolvam
tecnologias dirigidas às especificidades dos solos e
dos climas e se aposte em infra-estruturas.
O primeiro sinal de que o mundo tinha voltado a
acordar para os problemas da agricultura foi dado
pelo Banco Mundial. No seu relatório de 2007,
anunciou que ir dar prioridade ao sector. Só que a
aposta em investigação agrária e tecnologia e em
infra-estruturas de transporte e comercialização
demorará pelo menos 15 anos a produzir resultados.
Oportunidade ou risco?
Sabendo-se que dos três mil milhões que vivem nas
zonas rurais, três quartos estão entre os mais
pobres do planeta, não seria esta a oportunidade de
aumentar o rendimento destas comunidades? Seria, se
os agricultores estivessem a receber pelo que os
consumidores estão a pagar. Mas, com excepção dos
produtores ricos, quase todos são prejudicados pelas
medidas proteccionistas impostas pelos governos para
fazer face à tensão social. Fora que os agricultores
também são consumidores, pelo que estão também a ser
afectados pela alta dos preços.
Já a fome alastra cada vez mais, expandindo-se pelas
zonas urbanas - há mais 100 milhões a ser empurrados
para a pobreza, alertou Robert Zoellick, presidente
do Banco Mundial. Os mais pobres também sentem mais
esta alta de preços: segundo Gary Becker, um
economista da Universidade de Chicago, citado pela
revista The Economist, o aumento de um terço do
preço dos alimentos reduz em três por cento o nível
de vida nos países ricos e em 20 por cento nos
pobres.
O normal seria que perante o aumento da procura e
dos preços, os agricultores plantassem mais. "Num
mundo ideal, talvez, mas no mundo real não é assim",
sublinha Stacey Rosen, economista do Departamento
norte-americano de Agricultura, citado nas análises
do IFPRI.
"Num mundo perfeito, onde os produtores têm acesso a
sementes, fertilizantes, e outros inputs, e onde os
sistemas de transporte e comercialização funcionam
bem, haveria uma resposta aos altos preços com maior
produção", refere Rosen. Isto apenas se aplica aos
agricultores dos países ricos, que estão a reagir,
ou a nações onde o Estado está a ajudar os
agricultores, como é o caso da Índia.
Mas em boa parte do planeta não é o que se está a
verificar. Descapitalizados, os mais pobres não só
não investem como desinvestem, pois não aguentam os
custos de produção. A situação complica-se ainda
mais com a expansão das zonas urbanas, que roubam
solo agrícola. E, em cima disto, como nota Regina
Birne, do IFPRI, o aumento dos preços dos alimentos
poderá levar à subida do preço do solo, que se
tornará acessível apenas aos grandes proprietários e
empresas, empurrando ainda mais para a pobreza os
pequenos agricultores.
"Não é com donativos alimentares - com excepção
daqueles para situações extremas - que vamos lá e
muito menos com o levantamento de barreiras à
exportação, como alguns países fizeram, o que apenas
impede que os agricultores ganhem com este pico,
incentivando-os a investir", diz Abdolreza Abbassian.
"Tal como a FAO diz há quase dois anos, tem de haver
apoios financeiros para que os consumidores possam
comprar os produtos, compensando os produtores pelos
seus custos, e para munir os agricultores de meios
de produção [sementes e fertilizantes] para que
possam aumentar a oferta."
Apoiar os pequenos agricultores parece ser a chave
do sucesso: de uma penada, combatia-se a pobreza,
conseguir-se-iam maiores produtividades já que se
parte de uma base muito baixa e ainda se protegia o
ambiente, impedindo que se devastassem mais áreas
naturais, quando, por falta de métodos apropriados,
os camponeses deixam para trás solos exauridos e
avançam para dentro das florestas.