Público - 05 Abr 08

 

O choque tecnológico acaba em choque de betão?
José Manuel Fernandes

 

A opção pela corrida às obras públicas indica que o Governo vai repetir os mesmos erros das últimas décadas: vão gastar-se milhões e multiplicar--se os "monos"

 

 

A decisão de avançar com a construção de uma ponte rodo-ferroviária entre Chelas e o Barreiro confirma aquilo de que já se desconfiava: o Governo colocou em segundo plano as "modernices" do Plano Tecnológico e vai dar aos portugueses, daqui até às eleições, aquilo de que eles gostam. E do que eles gostam é de betão e obras públicas.

 

As peças foram-se encaixando a pouco e pouco, a decisão sobre a ponte Chelas-Barreiro foi a cereja no topo do bolo.

 

Primeiro: mais estradas, muito mais estradas. Ou melhor, auto-estradas. Nada menos de 1600 quilómetros, a maior parte dos quais em regiões desertificadas, onde o tráfego é diminuto e as ligações já construídas mostraram que ajudam mais a drenar pessoas e investimentos para o litoral do que a fixá-los no interior. E tudo com um modelo de financiamento confuso, numa altura em que os mercados estão em crise e o custo do crédito aumenta. Quem vai pagar? É que estamos a falar de 4 mil milhões de euros em quatro anos, um ritmo de mil milhões por ano. Bastaria que o mesmo dinheiro fosse canalizado para investigação científica para ultrapassarmos todas as metas a que nos comprometemos perante a Europa e que nunca atingiremos ao ritmo actual.

 

Segundo: a teimosia do TGV. Ninguém no seu juízo acredita que algum dia a ligação a Madrid seja sustentável, quanto mais rentável, ainda menos capaz de pagar o investimento, que se assume a fundo perdido. Basta olhar para os estudos e verificar que ou a população de Portugal e Espanha duplica, ou nunca se atingirá o número de passageiros previstos. Quanto à ligação Lisboa-Porto, com estação em Rio Maior para "compensar" o Oeste, é do domínio do delírio. Só interessa aos empresários de obras públicas, aos fornecedores de equipamentos e aos burocratas da Rave.

 

Terceiro: a trapalhada com o novo aeroporto de Lisboa sobre o qual, depois de se ter optado por Alcochete, pouco mais se soube. E o que devia saber-se é que o Governo tinha optado pela construção faseada da nova infra-estrutura, em lugar de se lançar já num programa gigantesco que implicará mais um investimento de 4.900 milhões de euros.

 

Quarto: a forma como foi decidida a atribuição das concessões das novas barragens, as manobras financeiras que envolveram a EDP e a falta de cuidado em garantir que haverá real concorrência no sector eléctrico ou que se realizam os estudos de impacto ambiental indicam que esta "fúria" é capaz de tropeçar em impasses como o de Foz Côa.

 

Quinto: o anúncio da ida do influentíssimo Jorge Coelho para a Mota-Engil, uma das maiores empresas portuguesas de construção civil, mostra que a aposta no betão é a aposta com futuro e muitas mais-valias. Ele é dos que, nestas matérias, não é de se enganar...

 

Valerá a pena falar de todas as falhas e incongruências do relatório do LNEC sobre a nova ponte entre Lisboa e a Margem Sul, mas fiquemo-nos, por hoje, no absurdo que representa a multiplicação de infra-estruturas rodoviárias (no relatório fala-se de ainda vir a ser necessário construir mais uma ligação entre Algés e a Trafaria!) num país que tem violado todas as suas metas no que respeita ao cumprimento dos objectivos, generosos, com que se comprometeu em Quioto no que refere às emissões de CO2.

 

Na verdade, tudo o que o Governo está a planear construir ou concessionar, com excepção das barragens, são machadadas numa política correcta de conservação da energia. Todos os cenários implicam que mais pessoas se desloquem em meios de transporte mais danosos para o ambiente. Nenhum dos cenários considera a hipótese de, daqui por uma década, o teletrabalho ter um maior peso na economia e menos gente ter de fazer tantos quilómetros todos os dias.

 

Nenhuma visão estruturada, responsável, sobre o futuro do país passa pela febre de betão que aí vem. Mas também é duvidoso que alguma vez um governo consiga pensar a longo prazo. Sabem, e isso sabem bem, é gastar dinheiro dos contribuintes para ganhar eleições por via de grandes obras públicas que geram sempre um pico de crescimento económico e absorvem alguns milhares de trabalhadores (mas não a maioria dos licenciados desempregados, a não ser que estes optem pela vida de pedreiro).

 

É por nenhum governo em Portugal ter ainda percebido que não deve ser ele a dirigir o crescimento económico que, ontem, muitos terão ficado surpreendidos com a constituição de um cluster na área da saúde, uma iniciativa da sociedade civil, de um grupo de empresas e investigadores que, como disse ao PÚBLICO Luís Portela, da Bial, "não esperaram que algo acontecesse para avançar".