O choque tecnológico acaba em choque de betão?
José Manuel Fernandes
A opção pela corrida às obras públicas indica que o
Governo vai repetir os mesmos erros das últimas
décadas: vão gastar-se milhões e multiplicar--se os
"monos"
A decisão de avançar com a construção de uma ponte
rodo-ferroviária entre Chelas e o Barreiro confirma
aquilo de que já se desconfiava: o Governo colocou
em segundo plano as "modernices" do Plano
Tecnológico e vai dar aos portugueses, daqui até às
eleições, aquilo de que eles gostam. E do que eles
gostam é de betão e obras públicas.
As peças foram-se encaixando a pouco e pouco, a
decisão sobre a ponte Chelas-Barreiro foi a cereja
no topo do bolo.
Primeiro: mais estradas, muito mais estradas. Ou
melhor, auto-estradas. Nada menos de 1600
quilómetros, a maior parte dos quais em regiões
desertificadas, onde o tráfego é diminuto e as
ligações já construídas mostraram que ajudam mais a
drenar pessoas e investimentos para o litoral do que
a fixá-los no interior. E tudo com um modelo de
financiamento confuso, numa altura em que os
mercados estão em crise e o custo do crédito
aumenta. Quem vai pagar? É que estamos a falar de 4
mil milhões de euros em quatro anos, um ritmo de mil
milhões por ano. Bastaria que o mesmo dinheiro fosse
canalizado para investigação científica para
ultrapassarmos todas as metas a que nos
comprometemos perante a Europa e que nunca
atingiremos ao ritmo actual.
Segundo: a teimosia do TGV. Ninguém no seu juízo
acredita que algum dia a ligação a Madrid seja
sustentável, quanto mais rentável, ainda menos capaz
de pagar o investimento, que se assume a fundo
perdido. Basta olhar para os estudos e verificar que
ou a população de Portugal e Espanha duplica, ou
nunca se atingirá o número de passageiros previstos.
Quanto à ligação Lisboa-Porto, com estação em Rio
Maior para "compensar" o Oeste, é do domínio do
delírio. Só interessa aos empresários de obras
públicas, aos fornecedores de equipamentos e aos
burocratas da Rave.
Terceiro: a trapalhada com o novo aeroporto de
Lisboa sobre o qual, depois de se ter optado por
Alcochete, pouco mais se soube. E o que devia
saber-se é que o Governo tinha optado pela
construção faseada da nova infra-estrutura, em lugar
de se lançar já num programa gigantesco que
implicará mais um investimento de 4.900 milhões de
euros.
Quarto: a forma como foi decidida a atribuição das
concessões das novas barragens, as manobras
financeiras que envolveram a EDP e a falta de
cuidado em garantir que haverá real concorrência no
sector eléctrico ou que se realizam os estudos de
impacto ambiental indicam que esta "fúria" é capaz
de tropeçar em impasses como o de Foz Côa.
Quinto: o anúncio da ida do influentíssimo Jorge
Coelho para a Mota-Engil, uma das maiores empresas
portuguesas de construção civil, mostra que a aposta
no betão é a aposta com futuro e muitas mais-valias.
Ele é dos que, nestas matérias, não é de se
enganar...
Valerá a pena falar de todas as falhas e
incongruências do relatório do LNEC sobre a nova
ponte entre Lisboa e a Margem Sul, mas fiquemo-nos,
por hoje, no absurdo que representa a multiplicação
de infra-estruturas rodoviárias (no relatório
fala-se de ainda vir a ser necessário construir mais
uma ligação entre Algés e a Trafaria!) num país que
tem violado todas as suas metas no que respeita ao
cumprimento dos objectivos, generosos, com que se
comprometeu em Quioto no que refere às emissões de
CO2.
Na verdade, tudo o que o Governo está a planear
construir ou concessionar, com excepção das
barragens, são machadadas numa política correcta de
conservação da energia. Todos os cenários implicam
que mais pessoas se desloquem em meios de transporte
mais danosos para o ambiente. Nenhum dos cenários
considera a hipótese de, daqui por uma década, o
teletrabalho ter um maior peso na economia e menos
gente ter de fazer tantos quilómetros todos os dias.
Nenhuma visão estruturada, responsável, sobre o
futuro do país passa pela febre de betão que aí vem.
Mas também é duvidoso que alguma vez um governo
consiga pensar a longo prazo. Sabem, e isso sabem
bem, é gastar dinheiro dos contribuintes para ganhar
eleições por via de grandes obras públicas que geram
sempre um pico de crescimento económico e absorvem
alguns milhares de trabalhadores (mas não a maioria
dos licenciados desempregados, a não ser que estes
optem pela vida de pedreiro).
É por nenhum governo em Portugal ter ainda percebido
que não deve ser ele a dirigir o crescimento
económico que, ontem, muitos terão ficado
surpreendidos com a constituição de um cluster na
área da saúde, uma iniciativa da sociedade civil, de
um grupo de empresas e investigadores que, como
disse ao PÚBLICO Luís Portela, da Bial, "não
esperaram que algo acontecesse para avançar".