É oficial: em Portugal a vida humana é violável.
Continua em vigor o artigo 24.º n.º 1 da
Constituição da República Portuguesa, que afirma
taxativamente: "A vida humana é inviolável." Mas,
com a promulgação do decreto da Assembleia n.º 112/X
de "exclusão da ilicitude nos casos de interrupção
voluntária da gravidez", a vida humana passou a ser
violável. É apenas durante as primeiras dez semanas
de particular fragilidade. Mas é indiscutivelmente
vida humana e é inegavelmente violável.
Vale a pena lembrar que, durante a enorme discussão
à volta do referendo recente, ninguém respeitável se
atreveu a dizer que o zigoto, embrião ou feto não
constituíssem vida humana. Alguns fizeram grandes
esforços para afirmar não se tratar de uma "pessoa
humana". Dado ser um conceito filosófico, é
susceptível de enormes discussões. Mas não foi
possível recusar o facto cientificamente demonstrado
de que se trata de uma vida, nem a evidência de
senso comum que é humana. Aquilo que se vai poder
violar, em estabelecimento de saúde oficial ou
oficialmente reconhecido e com o consentimento da
mãe, é indubitavelmente uma vida humana.
Assim o nosso ordenamento jurídico passará a incluir
um diploma que diz que a vida humana é violável. Não
parece levantar preocupação a flagrante
inconsistência lógica entre um decreto da Assembleia
da República e a Constituição da República que a
mesma jurou cumprir e defender. A não ser que se
tome como manifestação dessa preocupação o excessivo
aparato democrático de que essa Assembleia se
procurou revestir para justificar a inconsistência.
O referido decreto baseia-se num referendo com
59,25% de aprovação (apesar de isso só representar
26% dos eleitores) e uma votação parlamentar
largamente maioritária. Ninguém desconfia, pois, dos
pergaminhos eleitorais dessa legislação. Parece que,
desde que existam maiorias suficientes, passa a ser
aceitável proclamar incongruências lógicas. Parece
que, se a maioria quiser, pode violar-se a vida
humana.
Passado o processo legislativo (a menos de alguns
recursos) ficará o juízo da História. E esse pode
ser muito severo. A nossa geração, impiedosa com as
épocas passadas e as suas violações da vida e
dignidade humanas, sabe isso muito bem. A nossa
geração, que proclamou direitos, instituiu
tribunais, condenou culturas, regimes, povos,
conhece bem a dureza desse juízo.
A gravidade de uma atrocidade não depende da
legitimidade do documento ou da representatividade
do seu apoio. No passado, muitas abominações, da
escravatura e guerra ao genocídio, também gozaram de
toda a legitimidade institucional, consenso social e
adesão entusiástica. Isso não só não desculpou mas
até suscitou censura maior. Não é por isso que
deixam de ser hoje repudiadas violentamente. Esta
nossa lei não conduz a práticas comparáveis às dos
nazis, esclavagistas, chauvinistas e afins. Mas com
elas tem em comum precisamente este ponto:
considerar a vida humana violável. E são repudiadas
por nós por causa disso mesmo. Foi essa a razão
porque se pôs na Constituição o princípio que agora
corrompemos.
Quando a História julgar esta geração pelos seus
crimes, lembrará os nomes inscritos no decreto que
promoveu esta infâmia. Estarão lá os nomes de quem o
elaborou, propôs, aprovou e promulgou. Mas também lá
estará a assinatura de quem fez campanha a seu
favor, quem votou, aplaudiu e exultou com ele.
Aqueles que consideraram este atropelo à vida humana
como um direito, os sicofantas que inventaram
argumentos, congeminaram embustes e manipularam a
verdade para encontrar justificações falaciosas. Os
que apenas lavaram as mãos. Todos têm o nome
inscrito neste diploma.
Chegámos ao fim de uma das mais longas e
controvertidas epopeias parlamentares. A questão
real só agora começará. Será preciso adaptar o
sistema de saúde e lidar com milhares de dramas
pungentes. Mas acabou o entusiasmo, ruído,
balbúrdia, argumentação, interesse dos políticos. O
que ficou foi apenas um ponto muito simples: a
partir de agora em Portugal a vida humana é
violável.