Com estes hábitos, este estilo e esta prática de
favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não
está em boas
mãos
S ão às dezenas. Às centenas. Aos bandos.
Assessores, conselheiros, consultores,
especialistas, tarefeiros e avençados. São novos,
têm licenciaturas, mestrados e MBA, talvez até
doutoramentos. Sabem tudo de imagem e apresentação.
Vestem fato escuro de marca, mas alguns, mais blasés,
deixaram de usar gravata. São os gestores de
produto. O produto, no caso, é imagem e informação.
Informação do Governo para o exterior e a informação
sobre os cidadãos e a sociedade. Apesar da idade, já
tiveram múltiplas experiências nos jornais, nas
televisões, nas agências de informação e nas
empresas de imagem. O sistema vive em grande parte
destes profissionais reciclados. Estudam o inimigo e
fazem dossiers. Elaboram estratégias de apresentação
ao público de medidas. Organizam a informação do
Governo, controlam os actos dos ministros e dos
secretários de Estado, centralizam os contactos com
a imprensa. Telefonam, enviam SMS, escrevem mails,
convidam para um copo e deixam cair umas frases.
Conhecem intimamente os jornalistas a que dão
recados. Sabem quais são os jornais que se prestam.
Têm mapas e organigramas. Seleccionam frases
assassinas, escolhem os locais para as oportunidades
fotográficas, ocupam-se da vestimenta dos
governantes e designam os que serão privilegiados
com a informação criteriosamente racionada. São
especialistas em apanhar de surpresa as oposições,
sobretudo quando estas são incompetentes. Alimentam
os jornalistas que se portam bem e seguem as regras
do seu jogo. Gabam-se de fazer a agenda política do
país e da imprensa. Têm orgulho na centralização dos
serviços de informação, para que contribuíram, assim
como no controlo da informação do Governo, que
exercem. Trabalham na espuma e no efémero. Organizam
o passageiro. Prezam as aparências. Provocam
impressões e sensações. Obtém resultados imediatos e
passam à frente. Para a guerrilha, para os raides e
para as operações especiais, são excelentes. Os
socialistas, especialmente os da subespécie dos
pragmáticos, perdem-se de amores por esta gente e
por este sistema.
O PROBLEMA É QUE, NA POLÍTICA E NA VIDA PÚBLICA, nem
tudo se resume à agenda. Há vida para além dos
governos e dos gestores de imagem. Há cidadãos,
instituições, empresas, associações, partidos
políticos e autores de blogues. Há memória,
concorrência e luta de classes. Há ressentimento
neste mercado imperfeito de imagem e agenda. Existe
alguma imprensa que não segue o calendário do
Governo. Também há jornalistas que não se conformam
com a posição de veículos de recados. E há sobretudo
o funcionamento normal da sociedade e das
instituições que não se compadece com este universo
artificial e manipulado.
A VERDADE É QUE ESTE SISTEMA FORJADO E TREINADO para
a encenação mostra as suas debilidades à primeira
oportunidade. Como se tem visto. A balbúrdia da
Universidade Independente deu sinais de
desorientação. A questão dos diplomas académicos do
primeiro-ministro revelou imperícia e fragilidades a
que o sistema não souber acudir ou responder. Toda a
discussão sobre a Ota esteve e está envenenada por
operações de manipulação e ocultação. O encerramento
de unidades de saúde tem vindo a ser particularmente
afectado por este sistema. Os gastos dos gabinetes
dos governantes denunciados pelo Tribunal de Contas
deram origem a reacções inoportunas e desajeitadas.
ESTE ÚLTIMO CASO É MUITO SIGNIFICATIVO. O Tribunal
de Contas nunca foi muito apreciado pelos governos,
nem pelas autarquias. Foi este tribunal que abriu os
dossiers muito difíceis dos bairros sociais, dos
concursos públicos, dos subsídios ao futebol
profissional, dos desperdícios no sistema de saúde e
de educação, dos gastos anormais dos gabinetes dos
ministros e de tantos outros. Na nossa história
recente, já houve leis aprovadas no Parlamento para
legalizar as irregularidades de entidades oficias,
cujos comportamentos tinham sido condenados pelo
Tribunal de Contas. Trata-se de uma das poucas
entidades independentes de toda a nossa vida
pública. A sua condenação do Governo deixa este em
má posição: ou quer esconder os factos, ou deu má
informação ao tribunal. Veremos como este reage
agora, depois de ter anunciado que iria rever as
contas. O que está em causa é de excepcional
importância: a seriedade e a independência de uma
das poucas instituições que contribuem seriamente
para a democracia e o Estado de direito.
O PROBLEMA É PREOCUPANTE, pois as saídas não são
muito agradáveis. Primeira: o Tribunal de Contas
agiu com malícia. Pelos antecedentes, não acredito.
Pela personalidade do seu presidente, Oliveira
Martins, também não. Se fosse verdade, mal iria a
vida política. Segunda: o tribunal enganou-se. É
sempre possível, mas, pela rigorosa tradição de
centenas de relatórios e de sentenças, custa a crer.
A ser acertado, a confiança futura neste tribunal
fica abalada. Terceira: os gabinetes dos ministros,
especialmente o do primeiro-ministro, erraram. É
possível, mas absurdo. Quarta: o Governo tenta
ocultar os factos. Também é possível.
DE QUALQUER MODO, SEJA QUAL FOR A CONCLUSÃO, duas
certezas ficam connosco. Uma: há despesas a mais nos
gabinetes, mesmo as que servem para transferências
para outros ministérios. Há dinheiro a mais para
improvisos e expedientes, mesmo se legais. Duas: há
gente a mais nos gabinetes dos ministros. Há
multidão no gabinete do primeiro-ministro.
Cinquenta, cem ou cento e cinquenta são números
diferentes e de gravidade diversa. Mas é sempre
gente a mais. Estes factos revelam simplesmente um
estilo de governo clientelar e subdesenvolvido.
Apesar de os altos funcionários da administração
pública serem já todos, por lei, da confiança
política do Governo, os ministros rodeiam-se de
amigos ainda mais de confiança nos seus gabinetes.
Com estes hábitos, com este estilo, com esta
obsessão pela informação e com esta prática de
favoritismo, a tão proclamada reforma do Estado não
está em boas mãos.