Diário de Notícias - 29 Abr 06

Não é a conjuntura, estúpido

Francisco Sarsfield Cabral

Ficou célebre a frase da campanha vitoriosa de Clinton contra Bush pai: "É a economia, estúpido!" Por cá, as preocupações económicas são dominantes e toda a gente fala delas. Compreende-se: a crise tornou-se demasiado grande para passar despercebida ao mais distraído.

Há dias, surgiram o Boletim do Banco de Portugal e os relatórios da OCDE e do FMI, traçando um retrato negro da nossa situação económica. E a escalada dos preços do petróleo contribuiu para o pessimismo. Tudo isso foi debatido entre nós. Mas a discussão, sobretudo ao nível político-partidário, passou quase sempre ao lado do essencial.

Governo e oposição invocam as últimas estatísticas susceptíveis de reforçarem os seus pontos de vista. Na ânsia de ver materializar- -se a prometida e sucessivamente adiada retoma, o Governo valoriza qualquer indício animador (mesmo falso, como aconteceu com os desempregados inscritos no IEFP). Ao invés, perante os frequentes dados negativos sobre a conjuntura económica, aí temos as oposições a clamar que o Governo segue políticas erradas (embora por razões opostas, conforme as críticas vêm da esquerda ou da direita).

Só que o problema não é de conjuntura. Por exemplo, é ridículo argumentar que, estando hoje o desemprego umas décimas acima do estava há uns meses ou há um ano, o Governo é péssimo. Ou culpá-lo de continuarmos a crescer, quando crescemos, abaixo da média europeia.

Nada disso poderia ser diferente, dada a situação de base da economia nacional. Por isso os diagnósticos negativos do Banco de Portugal, da OCDE e do FMI não surpreenderam quem acompanha estes assuntos. Discutir agora "resultados" das políticas governativas (ou da falta delas) com base em índices mensais, trimestrais ou até anuais é distrair a opinião pública daquilo que realmente importa.

E o que importa é saber se o Governo está, ou não, a enfrentar a gravíssima crise estrutural que o País atravessa - e atravessará durante longos anos. Muita gente ainda não percebeu que o mundo mudou. A concorrência trazida pelo alargamento da UE e pela globalização, sem possibilidade de desvalorizar a moeda, bem como o envelhecimento da população, impõem mudanças radicais que ainda mal se iniciaram.

O Banco de Portugal nota que a situação actual é muito diversa da observada após a recessão de 1993. "Em contraste com o então verificado, a evolução recente da actividade económica em Portugal caracteriza-se pela ausência de uma recuperação sustentada."

Precisamente: a crise não é cíclica ou conjuntural. É diferente das anteriores, é estrutural. Diz a OCDE que a economia portuguesa começou a deteriorar-se em 2000 e deverá crescer abaixo da média europeia pelo menos até 2010. Por isso interessa pouco saber se vem aí ou não uma retomazinha, porventura puxada por algum factor externo. O essencial é perceber até que ponto estamos a actuar na mudança das estruturas.

Pelo contrário, temos preferido olhar para o imediato. Enquanto deu, os empresários continuaram a apostar em produções de mão- -de-obra barata, que hoje não conseguem vender. Os consumidores passaram a actuar como se fossem ricos, com a ajuda do crédito acessível. E o Estado presidiu alegremente a estas ilusões, ao dar ele próprio o exemplo aumentando sem cessar a despesa pública e o défice.

Resultado: pouco produtivo, o País perdeu competitividade. Por isso empobrecemos nesta era de globalização.

Só daremos a volta com remédios de fundo, não com aspirinas conjunturais. Ora aí, porventura forçado pelas circunstâncias, o actual Governo deu indícios de que finalmente se começaria a agir. Na Segurança Social, na Saúde, na Educação, na inovação tecnológica, na Administração Pública. É ainda muito pouco, mas em todo o caso mais do que fizeram governos anteriores.

Sócrates percebeu que o défice das contas públicas é mesmo uma questão séria e não a "obsessão" de que ele falava quando era oposição. Mas, por enquanto, a despesa pública e o défice continuam a subir. O défice de 2005, sem medidas extraordinárias e tirando os efeitos do ciclo económico, foi maior do que o défice de 2004.

Resta a esperança de que o ímpeto reformador que parecia animar o Governo acabe por se confirmar, o que implicará avançar com medidas bem mais duras e difíceis do que as tomadas até aqui. Para o nosso futuro é isto que interessa. É para aí, e não para evoluções de curto prazo que pouco significam, que devemos voltar a nossa atenção.