Mário Baptista, o pai dos filhos
de Carolina Salgado, diz que ela se automutila.
Carolina nega e lembra que ele tem problemas de
álcool e drogas. E terá já em seu poder provas de
que o depoimento foi comprado: "Ele é carenciado.""
Não sei e francamente não me interessa saber se é
verdade o que dizem Carolina Salgado e Mário
Baptista. Muito menos quero saber detalhes sobre a
vida conjugal de Pinto da Costa. Mas esta frase
retirada do jornal Correio da Manhã é reveladora da
emergência duma figura no quotidiano português: o
carenciado.
O que é ao certo um carenciado? Quando apareceram os
carenciados? Donde vieram? O que leva alguém - como
acontece neste caso - a definir outro como
carenciado? Temos carenciados para todos os gostos,
feitios e vocações. Temos os jovens, as crianças e
os idosos carenciados. Famílias carenciadas e
mulheres carenciadas. Emigrantes e imigrantes
carenciados...
Antes dos carenciados, existiam os pobrezinhos.
Estes de facto não sofriam de carências. Sofriam de
penúria total. Tinham casas certas e dias igualmente
certos para aparecerem em busca da esmola. De muitos
nem o nome próprio se sabia. Eram conhecidos
simplesmente como o pobre das terças-feiras, das
quartas ou, mais afortunadamente, dos domingos. O
sufixo "inho" tornava mais doméstico o seu caso
concreto e contribuía para que fosse aceitável a sua
presença.
Crianças maltratadas, mulheres esgotadas por uma
vida extenuante, velhos abandonados... são referidos
todos os dias pela imprensa portuguesa em meados do
século XX. Nas cidades e também nos campos. Aliás,
para os partidários do pretérito bucolismo ruralista,
nada melhor do que reler alguns dos antigos livros
de leitura. Quem não se lembra da Balada da Neve de
Augusto Gil? Depois daquele início melódico - "Batem
leve, levemente" - vinham uns versos dolorosamente
enregelados: "Passa gente e, quando passa,/ os
passos imprime e traça/ na brancura do caminho.../
Fico olhando esses sinais/ da pobre gente que
avança,/ e noto, por entre os mais,/ os traços
miniaturais/ duns pezitos de criança.../ E
descalcinhos, doridos.../ a neve deixa inda vê-los,/
primeiro, bem definidos,/ depois, em sulcos
compridos,/ porque não podia erguê-los!..."
Se hoje se fazem concertos cujas verbas ou parte
delas se destinam a apoiar os carenciados daqui e
dali, nessa época outros palcos lhes eram
destinados. Por exemplo, durante muito tempo um dos
números mais aplaudidos do teatro de revista era o
do enjeitado durante o qual se cantavam as desditas
da vida das crianças abandonadas. Bodos aos pobres,
que é como quem diz, refeições gratuitas eram
oferecidas nos dias em que se assinalavam datas
políticas importantes. Não se esperava que os
pobrezinhos deixassem de ser pobres. Esperava-se
simplesmente que fossem conformadamente vivendo e
morrendo.
É certo que, a dado momento, os pobrezinhos deixaram
oficialmente de existir. Não porque tivessem deixado
de ser pobres mas sim porque era suposto que
ganhassem consciência da sua situação e
consequentemente contra ela se revoltassem. Não por
acaso mandava a cartilha marxista que se recusassem
esmolas, pois talvez, à falta delas, os pobrezinhos
deixassem de estender a mão, passassem a erguer o
punho e ganhassem em integrar-se no proletariado.
Como se sabe, os ímpetos revolucionários duraram
pouco e de novo voltámos ao discurso caritativo.
Agora não se fala de pobrezinhos - aliás, estes nem
se atreveriam a bater às portas com medo que os
confundissem com assaltantes! -, esmolas só se dão
no metro mais para afugentar os pedintes, sobretudo
se estes insistirem numas ladainhas musicalizadas,
do que por piedade.
O carenciado configura-se assim como o resultado do
desaparecimento de duas figuras que marcaram o
século XX: o proletário e o pobrezinho. (É certo que
pelo meio outras transformações de não menor monta
ocorreram, nomeadamente a que transfigurou os
trabalhadores em colaboradores, mas isso ficará para
outra crónica.) Dos proletários, o carenciado herdou
o facto de exercer uma profissão remunerada. Dos
pobrezinhos manteve a dependência perante os apoios
do poder político e religioso. Ao contrário dos
proletários, o carenciado não se organiza nem
organiza revoltas. E, ao contrário dos pobrezinhos,
nunca considera suficientes os apoios que recebe.
Legiões de assistentes sociais, consultores,
sociólogos, animadores... ocupam-se dos carenciados.
Produzem relatórios sobre as diversas carências e
invariavelmente pedem mais assistentes sociais,
sociólogos, animadores... para assistirem melhor os
carenciados. Este seria um mundo perfeito caso se
auto-sustentasse e sobretudo não fosse ele mesmo
gerador de mais carências e perpetuador do estatuto
do carenciado. Aliás, um dos aspectos mais perversos
dos mecanismos de assistência social é que esses
auxílios muito frequentemente estimulam atitudes de
dependência e conformismo. Para um carenciado,
deixar de o ser não é apenas uma questão de ter
maiores rendimentos. É também uma questão de
identidade.
Assim, não só o número de carenciados está em
constante inflação como o conceito de carenciado é
absolutamente flexível. Temos os carenciados de
afecto e de tempo. De cultura e de espaços verdes.
Dentro de cada cidadão existe um potencial
carenciado. Outra das características das carências
é que elas nunca são completamente resolvidas,
embora possam ser mitigadas através de apoios. Mas
apenas mitigadas.
A primeira vez que ouvi a palavra "carenciado" ser
usada como forma de identificação de alguém foi numa
escola pública de Lisboa. Para os carenciados
existia um ATL. Senhas de cantina. Manuais
escolares. Quando era necessário tratar de qualquer
assunto que envolvesse verbas, lá se ouvia falar do
colectivo "os carenciados". Não raramente
pergunta-se às crianças: "Tu és carenciado?" Muitas
respondem tranquilamente que sim.
Nesta escola, tal como em muitas outras, as crianças
têm o seu nome afixado em listas onde está registado
se são ou não carenciadas. Consoante os critérios da
5 de Outubro, umas vezes arrumam-nos em escalões - e
então temos os carenciados A, B e C - noutras são
simplesmente carenciados. Milhares e milhares de
crianças aprendem as primeiras letras ao mesmo tempo
que aprendem que fazem parte do grupo dos
carenciados. Mais concretamente, interiorizam que
são carenciados. Ou seja, aqueles a quem não só o
Estado português entende que deve prestar
determinados tipo de apoios mas também aqueles de
quem toda uma sociedade não só espera que paguem
menos mas sobretudo que dêem menos. Que tenham
piores resultados escolares. Que tenham mais
problemas com a justiça. Mais conflitos de
vizinhança. Que chorem nos directos para as câmaras
de televisão. Que se mostrem indignados. Ou que,
como está implícito na frase de Carolina Salgado, se
prestem a actos mais questionáveis, dada a sua
vulnerabilidade.
Levámos todo o século XX a falar de pobres. Dos
pobres falámos em 1910. 1926. 1974. Dos pobres
continuamos a falar. Talvez seja mais do que o
momento de falarmos menos de pobreza e mais de como
produzirmos riqueza. Jornalista