Público - 29 Abr 06

Os carenciados

Helena Matos

Mário Baptista, o pai dos filhos de Carolina Salgado, diz que ela se automutila. Carolina nega e lembra que ele tem problemas de álcool e drogas. E terá já em seu poder provas de que o depoimento foi comprado: "Ele é carenciado."" Não sei e francamente não me interessa saber se é verdade o que dizem Carolina Salgado e Mário Baptista. Muito menos quero saber detalhes sobre a vida conjugal de Pinto da Costa. Mas esta frase retirada do jornal Correio da Manhã é reveladora da emergência duma figura no quotidiano português: o carenciado.
O que é ao certo um carenciado? Quando apareceram os carenciados? Donde vieram? O que leva alguém - como acontece neste caso - a definir outro como carenciado? Temos carenciados para todos os gostos, feitios e vocações. Temos os jovens, as crianças e os idosos carenciados. Famílias carenciadas e mulheres carenciadas. Emigrantes e imigrantes carenciados...
Antes dos carenciados, existiam os pobrezinhos. Estes de facto não sofriam de carências. Sofriam de penúria total. Tinham casas certas e dias igualmente certos para aparecerem em busca da esmola. De muitos nem o nome próprio se sabia. Eram conhecidos simplesmente como o pobre das terças-feiras, das quartas ou, mais afortunadamente, dos domingos. O sufixo "inho" tornava mais doméstico o seu caso concreto e contribuía para que fosse aceitável a sua presença.
Crianças maltratadas, mulheres esgotadas por uma vida extenuante, velhos abandonados... são referidos todos os dias pela imprensa portuguesa em meados do século XX. Nas cidades e também nos campos. Aliás, para os partidários do pretérito bucolismo ruralista, nada melhor do que reler alguns dos antigos livros de leitura. Quem não se lembra da Balada da Neve de Augusto Gil? Depois daquele início melódico - "Batem leve, levemente" - vinham uns versos dolorosamente enregelados: "Passa gente e, quando passa,/ os passos imprime e traça/ na brancura do caminho.../ Fico olhando esses sinais/ da pobre gente que avança,/ e noto, por entre os mais,/ os traços miniaturais/ duns pezitos de criança.../ E descalcinhos, doridos.../ a neve deixa inda vê-los,/ primeiro, bem definidos,/ depois, em sulcos compridos,/ porque não podia erguê-los!..."
Se hoje se fazem concertos cujas verbas ou parte delas se destinam a apoiar os carenciados daqui e dali, nessa época outros palcos lhes eram destinados. Por exemplo, durante muito tempo um dos números mais aplaudidos do teatro de revista era o do enjeitado durante o qual se cantavam as desditas da vida das crianças abandonadas. Bodos aos pobres, que é como quem diz, refeições gratuitas eram oferecidas nos dias em que se assinalavam datas políticas importantes. Não se esperava que os pobrezinhos deixassem de ser pobres. Esperava-se simplesmente que fossem conformadamente vivendo e morrendo.
É certo que, a dado momento, os pobrezinhos deixaram oficialmente de existir. Não porque tivessem deixado de ser pobres mas sim porque era suposto que ganhassem consciência da sua situação e consequentemente contra ela se revoltassem. Não por acaso mandava a cartilha marxista que se recusassem esmolas, pois talvez, à falta delas, os pobrezinhos deixassem de estender a mão, passassem a erguer o punho e ganhassem em integrar-se no proletariado. Como se sabe, os ímpetos revolucionários duraram pouco e de novo voltámos ao discurso caritativo. Agora não se fala de pobrezinhos - aliás, estes nem se atreveriam a bater às portas com medo que os confundissem com assaltantes! -, esmolas só se dão no metro mais para afugentar os pedintes, sobretudo se estes insistirem numas ladainhas musicalizadas, do que por piedade.
O carenciado configura-se assim como o resultado do desaparecimento de duas figuras que marcaram o século XX: o proletário e o pobrezinho. (É certo que pelo meio outras transformações de não menor monta ocorreram, nomeadamente a que transfigurou os trabalhadores em colaboradores, mas isso ficará para outra crónica.) Dos proletários, o carenciado herdou o facto de exercer uma profissão remunerada. Dos pobrezinhos manteve a dependência perante os apoios do poder político e religioso. Ao contrário dos proletários, o carenciado não se organiza nem organiza revoltas. E, ao contrário dos pobrezinhos, nunca considera suficientes os apoios que recebe. Legiões de assistentes sociais, consultores, sociólogos, animadores... ocupam-se dos carenciados. Produzem relatórios sobre as diversas carências e invariavelmente pedem mais assistentes sociais, sociólogos, animadores... para assistirem melhor os carenciados. Este seria um mundo perfeito caso se auto-sustentasse e sobretudo não fosse ele mesmo gerador de mais carências e perpetuador do estatuto do carenciado. Aliás, um dos aspectos mais perversos dos mecanismos de assistência social é que esses auxílios muito frequentemente estimulam atitudes de dependência e conformismo. Para um carenciado, deixar de o ser não é apenas uma questão de ter maiores rendimentos. É também uma questão de identidade.
Assim, não só o número de carenciados está em constante inflação como o conceito de carenciado é absolutamente flexível. Temos os carenciados de afecto e de tempo. De cultura e de espaços verdes. Dentro de cada cidadão existe um potencial carenciado. Outra das características das carências é que elas nunca são completamente resolvidas, embora possam ser mitigadas através de apoios. Mas apenas mitigadas.
A primeira vez que ouvi a palavra "carenciado" ser usada como forma de identificação de alguém foi numa escola pública de Lisboa. Para os carenciados existia um ATL. Senhas de cantina. Manuais escolares. Quando era necessário tratar de qualquer assunto que envolvesse verbas, lá se ouvia falar do colectivo "os carenciados". Não raramente pergunta-se às crianças: "Tu és carenciado?" Muitas respondem tranquilamente que sim.
Nesta escola, tal como em muitas outras, as crianças têm o seu nome afixado em listas onde está registado se são ou não carenciadas. Consoante os critérios da 5 de Outubro, umas vezes arrumam-nos em escalões - e então temos os carenciados A, B e C - noutras são simplesmente carenciados. Milhares e milhares de crianças aprendem as primeiras letras ao mesmo tempo que aprendem que fazem parte do grupo dos carenciados. Mais concretamente, interiorizam que são carenciados. Ou seja, aqueles a quem não só o Estado português entende que deve prestar determinados tipo de apoios mas também aqueles de quem toda uma sociedade não só espera que paguem menos mas sobretudo que dêem menos. Que tenham piores resultados escolares. Que tenham mais problemas com a justiça. Mais conflitos de vizinhança. Que chorem nos directos para as câmaras de televisão. Que se mostrem indignados. Ou que, como está implícito na frase de Carolina Salgado, se prestem a actos mais questionáveis, dada a sua vulnerabilidade.
Levámos todo o século XX a falar de pobres. Dos pobres falámos em 1910. 1926. 1974. Dos pobres continuamos a falar. Talvez seja mais do que o momento de falarmos menos de pobreza e mais de como produzirmos riqueza. Jornalista