Portugal tem um jeito especial para fazer uma trapalhada
de assuntos importantes. O recente debate acerca da lei
de "procriação medicamente assistida" é um bom exemplo
desse dom. Logo o título é absurdo: hoje toda a gravidez
tem assistência médica. Aquilo de que a lei quer tratar
realmente é da procriação artificial.
Foi há quase 30 anos que nasceu o primeiro bebé-proveta,
mas mesmo antes de 1978 já se sabia bem que essa
tecnologia, com grandes benefícios na fertilidade,
trazia enormes problemas éticos e legais. Desde então os
avanços e os dilemas não deixaram de aumentar.
Vários países estão agora a rever as suas antigas leis,
mas Portugal continua terra selvagem, sem qualquer
regulamentação das práticas.
Cada nova tentativa aumenta o falhanço e a vergonha.
O primeiro projecto foi apresentado no Parlamento em
1985, mas foram precisos 13 anos para que a Assembleia
aprovasse um articulado. Essa lei foi vetada em 1998
pelo Presidente Sampaio, que referiu como razão o
insuficiente debate público durante o processo
legislativo. Nas últimas eleições nenhum partido achou o
problema importante para ser mencionado no seu programa
eleitoral. Apesar disso, subitamente, apresentaram
quatro propostas de lei, de novo sem qualquer discussão
pública. Os articulados representam o que de pior se tem
escrito sobre o tema.
O benefício dessas técnicas é muito meritório, dando a
alegria de ter um filho a quem não o pode naturalmente.
Mas os abusos que a lei deve acautelar são também
evidentes. Está em causa uma vida humana como qualquer
outra, mas criada de forma artificial. A ciência hoje
permite a separação quase total entre pais e filho. Já
não é preciso que o pai e a mãe se unam (fecundação
artificial homóloga); mas também não é preciso que se
encontrem (fecundação heteróloga), ou sequer se conheçam
(bancos de embriões, esperma ou óvulos). Não é
necessário que ambos estejam vivos (inseminação post
mortem), ou que a mãe fique grávida (maternidade
substitutiva). Por enquanto ainda é forçoso que pelo
menos um deles saiba, mas vai deixar de ser (bebés
nascidos em laboratório), ou sequer de haver um pai e
uma mãe (clonagem).
Como na questão paralela da adopção, a preocupação devia
centrar-se na criança, que tem de gozar dos mesmos
direitos básicos e condições familiares que a lei
garante a qualquer um. O Estado existe para proteger os
fracos (embriões), não os fortes (cientistas e pais).
Até porque aqui os perigos de manipulação e
aproveitamento são assustadores. O embrião pode ser
descartado, destruído, vendido, usado em experiências;
pode ter pais desconhecidos, trocados, duas mães, etc.
Podem repetir-se os piores horrores da História, com a
diferença de que a pessoa envolvida, no estado
embrionário, é a mais vulnerável que existe. A
utilização de fetos para usos científicos reproduz o que
de pior fizeram os investigadores nazis nos campos de
concentração, aqui sobre pessoas em gestação. A
eliminação de "embriões excedentários" copia o horror do
aborto, mas em muito maior escala. A sua selecção retoma
as infâmias da eugenia e discriminação, mas nos próprios
filhos. A fecundação post mortem cria órfãos
antes mesmo de existirem. O congelamento de embriões
representa a prisão absoluta. Os bancos de esperma e a
maternidade de substituição abrem um comércio mais
vergonhoso que a escravatura e prostituição. O anonimato
dos dadores constrói pessoas sem identidade genética,
que amanhã podem ter relações consanguíneas com pais ou
irmãos desconhecidos.
Todas estas coisas, em maior ou menor grau, são
permitidas pelos projectos discutidos na Assembleia,
longe do público. O mais surpreendente é mesmo essa
semelhança entre as várias propostas alegadamente
opostas. A criação de bancos de embriões e a utilização
em investigação é permitida por todos, do PSD ao BE. As
exigências éticas, os fiascos antigos, até protocolos
internacionais assinados por Portugal sobre o tema, nada
parece ter influencido os nossos deputados. Estes, em
todo o espectro partidário, insistem numa atitude
embasbacada perante a ciência, numa mentalidade parola
de querer ser o mais progressivo do mundo, correndo
atarantado para soluções libertárias e obsoletas.
Muitos cidadãos enveredaram pela única via séria,
recolhendo assinaturas para uma petição de referendo
(ver
www.referendo-pma.org). Mas
tudo indica que não será ainda desta vez que Portugal
terá uma legislação decente sobre o tema.