Diário de Notícias - 21
Abr 05
E o direito a
nascer?
Jorge Bacelar Gouveia
A questão da
despenalização do aborto sempre tem sido e
espero que volte a ser uma questão substancial,
de natureza cultural e civilizacional, com a
importância de por ela passar a identidade de
uma sociedade
A recentíssima aprovação,
pela Assembleia da República, de um novo pedido
de referendo sobre a questão do aborto veio
recolocar na ordem do dia a temática tão séria
quanto melindrosa da vida humana intra-uterina e
da sua protecção.
Infelizmente, a discussão tem sido apenas
processual, determinando-se até quando é que
pode ser convocado o referendo, se pode ser
realizado nos períodos eleitorais ou qual a
razão de ser de tal não poder acontecer
juntamente com as eleições segundo a actual
versão da Constituição.
A certa altura, tudo parece reduzir-se a um
esquema mais ou menos táctico, em que cada passo
espera pelo passo do adversário, com todo o
esvaziamento substantivo que lhe vai sendo
inerente.
E esta tendência chega mesmo aos dirigentes dos
partidos que, em vez de dizerem o que pensam,
mesmo a título pessoal e não em nome dos
partidos que dirigem, se limitam a fazer
análises de prioridade política e, assim, se vão
coibindo de manifestar a sua posição nessa
matéria.
A questão da despenalização do aborto sempre tem
sido e espero que volte a ser uma questão
substancial, de natureza cultural e
civilizacional, com a importância de por ela
passar a identidade de uma sociedade.
Só que não deixa de espantar que a pretendida
realização do referendo sobre a despenalização
do aborto surja num directo contexto
político-eleitoral, sem que se cuide
verdadeiramente de saber que esforços foram
realizados para evitar os dramas humanos que lhe
estão associados, como se houvesse um qualquer
milagre em que a simples decisão referendária
pudesse resolver algum problema real.
Por outro lado, muitos têm feito crer que
Portugal é, nesta matéria, um dos países mais
atrasados do Mundo, com uma legislação
"cavernícola", feita contra as mulheres e contra
os ventos da modernidade ou, talvez melhor
dizendo, pós-modernidade.
A actual legislação portuguesa aceita a não
penalização do aborto nas circunstâncias
particularmente dramáticas de aborto eugénico,
terapêutico e criminológico, tendo parecido ao
legislador que estas seriam causas fortes para
justificar a eliminação da gravidez.
E essa é uma legislação que se afigura
perfeitamente equivalente às outras legislações
europeias, tanto nas indicações possíveis do
aborto não punível, como nos prazos em que tal
acto vem a ser praticado.
O que está de novo em causa - como estava em
1998, quando foi feito o referendo, que terminou
com a vitória do "não" - é a possibilidade de se
dar um passo qualitativo de grande monta, que é
a aceitação do aborto livre ou a pedido,
normalmente fundado em razões pessoais,
económicas e sociais.
Quer isto tudo dizer que, no caso de este passo
ser dado, cabe aos intervenientes - mãe e
técnicos de saúde - disporem das condições de
sobrevivência de um ser humano apenas com base
em razões que, valorativamente, lhe são
inferiores, tal como se percebe da dignidade da
pessoa humana, que impõe o primado da pessoa
sobre o dinheiro ou sobre o prazer.
Se, acaso, esta viesse a ser a nova solução,
enfrentaríamos uma perigosa inversão de valores,
que também espreita quando se fala na questão da
possibilidade da legalização da eutanásia.
Este é verdadeiramente o cerne do problema, que
não é tanto o da incriminação da mulher que vai
abortar, pois que na esmagadora maioria dos
casos não pode ser condenada por lhe faltar um
juízo de censurabilidade da sua conduta,
atendendo ao estado de angústia e de medo em que
se encontra.
Mas em toda esta matéria igualmente impressiona
o silêncio com que é visto o ser humano que, no
ventre materno, se encontra em desenvolvimento,
que tem a nossa mesma natureza, mas que para seu
azar não pode ser visto, não pode ser escutado e
não pode falar.
Não terá ele o direito a nascer e não teremos
nós, a começar pelo Estado, a obrigação social
de lhe proporcionar todas as condições para ser
bem recebido?
Claro que sim. Só uma sociedade doentia é que
pode acreditar que a liberalização do aborto
seja um bem. |