Público - 8 Abr 05
Comece pelo outro, s.f.f.
Miguel Sousa Tavares
Todos os portugueses querem "reformas". Todos, sem excepção. Não há
um só que recuse as célebres "reformas", das quais esperamos o
milagre de nos tornarmos um país próspero e justo, onde o Estado
gasta só o que tem e bem gasto, onde todos cumprem os seus deveres
para com a comunidade, onde cessaram os privilégios, as situações de
favor e as arbitrariedades. Onde o ensino é factor de
desenvolvimento, a saúde competente e a justiça eficaz. Todos querem
isto. Mas ninguém quer que as ditas reformas comecem por si, pela
sua actividade, pelo seu sector. Para serem aceitáveis, as reformas
têm sempre de começar pelo vizinho e por aí se quedarem.
Os notários, por exemplo, não gostaram nada da tímida liberalização
ensaiada no mandato de Celeste Cardona. A seu ver, tal como estava,
o sistema funcionava perfeitamente bem: havia poucos notários, tão
poucos que era preciso suplicar pelo favor de uma escritura, as
taxas eram caríssimas, o atendimento baseava-se na "cunha" e no
poder financeiro do cliente e as condições de trabalho dos
funcionários e de atendimento do público eram, por tradição
novecentista, dignas de qualquer repartição do Terceiro Mundo. Nunca
lhes ocorreu perguntar aos clientes se estavam satisfeitos. Eles
estavam: negócio garantido por numerus clausus e imposições legais
que garantiam a clientela, custos mínimos, receitas exuberantes sem
qualquer correspondência com o serviço prestado. Logicamente, não
gostaram da anunciada reforma, tentando convencer-nos que todo o
comércio jurídico ficava ameaçado pela entrada intempestiva de
"pára-quedistas" no negócio até aí reservado. Porque, como se
compreende, é muito complicado e exige grandes conhecimentos
técnicos, elaborar um documento onde se atesta que o Senhor A,
natural de, filho de, residente em, contribuinte número tal, comprou
ao Senhor B, natural de, filho de, residente em, contribuinte número
tal, a fracção do prédio X, sita na freguesia e concelho de,
inscrito na matriz de, sob o número tal, pelo preço de. Pela
contrapartida de nos elaborarem duas folhas dactilografadas a dizer
isto, com base nos documentos que nós próprios apresentamos, e o
favor de nos ler o conteúdo em voz alta, cobravam-nos e cobram-nos
centenas ou milhares de contos - parte para o Estado, parte para
eles.
Pela mesma razão, também as farmácias não gostaram que o Governo
tenha ameaçado retirar-lhe o exclusivo do comércio de aspirinas e
afins, que vêem, se calhar justamente, como um primeiro passo para
invadir também o seu reservado e sagrado território de negócios,
podendo amanhã, quem sabe, o Governo permitir-se o desplante de pôr
fim à exigência legal de ter de ser um licenciado em farmácia a
possuir o respectivo alvará, de proteger os já existentes em relação
a novos candidatos, ou até - suprema arrogância! - ousar torpedear o
fabuloso poder financeiro da Associação Nacional de Farmácias, o
eterno e tranquilo credor nº1 do Estado. Estes querem-nos convencer
que comprar uma aspirina sem a presença vigilante e terapêutica do
farmacêutico é uma ameaça à saúde pública.
Também os juízes ficaram incomodados com a parte do programa do
Governo que se propõe retirar-lhes um dos dois meses de férias de
Verão (e não nos esqueçamos que os tribunais fazem também férias de
Natal e de Páscoa). Vários juízes vieram a terreiro defender o seu
instalado direito a férias prolongadas, esgrimindo o argumento
determinante de que é nesses dois meses de férias de Verão que eles
podem ocupar-se dos "processos mais complicados" (estão a ver a mala
do carro de um juiz a caminho da praia, carregada de "processos
complicados", códigos, colectâneas de jurisprudência e tratados de
direito?). Um juiz chegou mesmo a escrever no Expresso que nenhum
trabalhador em Portugal tem uma dedicação tão intensa e tão digna à
profissão como eles têm. E ameaçava começar a cobrar horas
extraordinárias se lhe reduzissem as férias anuais de três para dois
meses. Podia-se evitar isto, obviamente, se os processos não
demorassem anos, às vezes à espera de um simples despacho a dizer
"Notifique-se", ou se fosse aumentado o número de juízes. Mas a
classe sempre se opôs ao aumento do número de juízes com o argumento
de que isso iria degradar o nível da jurisprudência, partindo da
opinião implícita de que mais vale uma boa sentença ao fim de dez
anos do que uma má sentença ao fim de dois. Mas, também eles, nunca
nos perguntaram a nossa opinião.
A última reacção corporativa em data é a dos professores, que
ficaram assustados e indignados com a hipótese de terem de passar a
preencher os "furos" das aulas, causados pelas constantes ausências
de colegas. Mas os dados à partida são estes: Portugal é,
comparativamente, dos países da UE que mais gastam em educação e que
mais aumentou os seus gastos nas últimas décadas, com resultados que
são cada vez piores. Há um excesso, e não um défice, de professores
no sector público, que todos os anos se agrava, em função do
encerramento de escolas do interior, ocasionado pelo desequilíbrio
territorial e baixa da taxa de natalidade. Os professores
portugueses estão, proporcionalmente, no grupo dos mais bem pagos da
UE a quinze (se considerarmos a UE com os novos membros, estamos no
topo). As férias dos professores do ensino primário e secundário são
de tal forma alargadas que, se nos pusermos a fazer contas aos dias
sem trabalho, chegamos a estes números extraordinários: 90 dias de
férias de Verão, 15 de Páscoa, 15 de Natal, 7 de Carnaval, 7 de
feriados, 104 de fins-de-semana. Total: 131 dias de aulas e 234 de
folgas. Parece muito, mas ainda não é: os professores portugueses
apresentam também o maior índice de baixas por doença ou outros
motivos, a nível europeu, e, a nível interno, são provavelmente, o
sector sócio-profissional com maior quantidade de faltas
justificadas ao trabalho. Com este pano de fundo, pretender que um
professor que falte seja de imediato substituído por outro que se
encontre disponível parece ser o mínimo exigível e decente para com
os alunos - qualquer estabelecimento privado o faz. Além do mais,
tem o factor moralizador de responsabilizar o professor que falta
sem razão perante o colega que vai ter de o substituir: assim, as
faltas deixam de penalizar apenas os alunos. Sim, parece lógico e
justo, mas não para todos: o Sindicato dos Professores já se
manifestou contra. Por princípio e por tradição.
E isto é só o princípio. Quando todos os outros estiverem a gritar -
advogados, construtores de obras públicas, futebolistas, autarcas,
médicos, artistas subsidiados -, então aí veremos se o país quer
mesmo o início das reformas e o fim dos privilégios, ou se quer que
tudo continue na mesma, o Estado a endividar-se, o país a continuar
a divergir da Europa em índice de crescimento económico e o futuro
das gerações que se seguem a ser sabotado pelo egoísmo da actual.
Jornalista
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