Público - 14 Abr 04

"A Fiscalidade Tem de Reconhecer Que Quando Uma Pessoa Se Casa Não Pode Pagar Mais Impostos por Isso"
Por ANDREIA SANCHES

Anunciados pelo Governo no final de Março, os "100 Compromissos para Uma Política da Família" foram ontem publicados em "Diário da República". Margarida Neto, coordenadora nacional para os assuntos da família, lamenta que de fora tenham ficado medidas que acabavam com uma situação em que a fiscalidade beneficia o divórcio. Mas garante que os impostos não são o único problema dos agregados familiares portugueses e que o plano apresenta respostas concretas para atender às suas necessidades. É o caso do que está previsto em matéria de formação dos pais. "O Estado não tem de dizer aos pais como educar os seus filhos. O que tem é de ajudar as associações e os movimentos que já trabalham nesta área."

PÚBLICO - Está satisfeita com as medidas de apoio à família aprovadas pelo Governo?
MARGARIDA NETO - Existe um conselho consultivo para os assuntos da família onde têm assento representantes de quase todos os ministérios e das associações de família. Começámos por desenhar um esqueleto de uma política de família para os próximos dois anos e saiu um documento, que não é obviamente este, e que incluía [medidas de] fiscalidade... mas muitos dos compromissos que aqui estão saíram de facto do conselho consultivo.

Não concordo que isto saiba a velho ou a coisa feita. Preferia que incluísse a fiscalidade, porque tem de se dar um sinal claro de que esta protege a família. Mas tenho de aceitar a explicação do senhor primeiro-ministro, que disse que essa questão será abordada na reforma fiscal, numa reforma mais ampla.

P. - Mas acha que se pode falar de uma política de promoção da família, quando, ainda recentemente, a Associação Portuguesa de Famílias Numerosas denunciou que um casal casado com filhos paga mais impostos do que se for divorciado?
R. - Pode. Não aceito que se diga que porque a fiscalidade não está contemplada [nos "100 Compromissos do Governo"] não estamos a proteger convenientemente a família. Há toda uma valorização do quadro familiar que está presente neste documento. A fiscalidade tem de reconhecer que quando uma pessoa se casa não pode pagar mais impostos por isso... Mas [há outras] medidas concretas neste plano.

P. - Por exemplo?
R. - Por exemplo, na área da conjugalidade e da parentalidade, do aconselhamento e orientação conjugal. Em 2002, o divórcio subiu 46 por cento. Podemos perguntar-nos: isto é normal? Devemos fazer alguma coisa? Eu, evidentemente, acho que sim.

P. - Mas não é uma inevitabilidade o divórcio aumentar?
R. - Este ano, e ninguém referiu isso na comunicação social, o número de divórcios desceu. Ainda assim, é um facto que há muitos. E diria que sim, que há quase uma inevitabilidade [relacionada] com a nossa forma de viver e com a maneira como fomos banalizando o divórcio e, de certa forma, o casamento... Cultivamos pouco a relação. Por um lado casamos com uma convicção muito grande de que queremos ser felizes, ter uma relação conjugal de qualidade - e isto é novo, antigamente não era bem assim. As expectativas da satisfação, da sexualidade, do amor, de realização pessoal e profissional, e de viver um amor com aquela pessoa são muito altas. Mas este número avassalador de divórcios significa que não conseguimos manter essas expectativas. Com grande sofrimento.

P. - Acredita que o divórcio tem efeitos negativos na estrutura social?
R. - Pois claro. Uma sociedade coesa, forte, precisa de uma família estável, de empresas estáveis, e de repente olhamos para a sociedade portuguesa, vemos famílias a desestruturarem-se, empresas [com situações] complicadas, uma vida que é um "stress" permanente... acho que não estamos a viver bem e agora não estou só a falar dos portugueses.

Aos consultórios - e o facto de ser psiquiatra dá me esta experiência - chegam, em primeiro lugar, e como sempre, os professores. A seguir temos uma geração de mulheres de 40 e poucos anos, completamente espatifadas... que tentam funcionar como supermulheres, tentando chegar a tudo, e nós não conseguimos chegar a tudo.

P. - Em que medida a mediação ou o aconselhamento familiar - o plano prevê o alargamento destes serviços - podem ajudar?
R. - Já existe um Gabinete de Mediação Familiar, em Lisboa, que resulta de um protocolo entre o Ministério da Justiça e a Ordem dos Advogados, gratuito. E também alguns em autarquias, porque há muita gente com formação em mediação familiar. [Mas] a maior parte está no sector privado.

Contudo, não é só na área da mediação que é preciso actuar. Porque, tecnicamente, a mediação é a ajuda que se dá ao casal que já decidiu a ruptura e tenta perceber qual a melhor maneira de, com o menor sofrimento possível, dos próprios e dos miúdos, fazer essa ruptura. O que precisamos, para além disto, é tentar actuar a tempo de uma situação não acabar em ruptura.


P. - Essa resposta existe no sector público?
R. - Que eu conheça, não existe - eventualmente há gabinetes de autarquias que dão apoio... mas são de mediação que não é a mesma coisa que aconselhamento ou terapia conjugal.

P. - Mas neste momento a única coisa que existe é um gabinete de mediação em Lisboa. Qual é a meta? Quantos vão ser criados até 2006? Ou não se atreve a quantificar?
R. - Não, não me atrevo a quantificar. O sonho era aumentar os gabinetes de mediação no sector público. O gabinete de Lisboa vai ter atribuições alargadas. E podem estabelecer-se parcerias com quem já está no terreno a trabalhar e tem formação em terapia familiar. Existe, por exemplo, um centro de aconselhamento familiar que trabalha de graça, que funciona com voluntários. Porque é que hão-de trabalhar voluntariamente? As autarquias também têm um papel importante. Esta questão é absolutamente essencial. Senão mais vale estarmos todos calados e não falar sequer de família, porque não podemos olhar para este número de divórcios sem fazer nada...

P. - Outra medida que muito acarinha é a formação de pais. Os pais precisam mesmo de aprender a educar os filhos?
R. - Precisam. Neste momento as dúvidas são muito maiores, a diversidade de valores é maior do que antigamente. Não é por acaso que as associações que trabalham na formação parental têm tido, de há uns anos para cá, uma procura enorme. Os consultórios de psiquiatria também se transformaram em lugares de apoio aos pais, porque eles estão cheios de dúvidas. O meu filho deve ou não ter televisão no quarto? O "Game Boy" faz bem ou mal? Como é que falamos de droga, de pedofilia ou de sexualidade em casa? São questões absolutamente novas.

P. - Mas cabe ao Estado facultar formação aos pais?
R. - Jamais. O Estado não tem de dizer aos pais como educar os seus filhos. O que tem é de ajudar as associações e os movimentos que trabalham nesta área - e há muita gente a fazer isto, nomeadamente nas próprias escolas.

P. - Mas na prática apoia? Há alguma rubrica, nalgum orçamento de um ministério, destinada a isto?
R. - Vamos ter de ter. Tem de haver.

P. - Outro ponto do plano diz respeito à conciliação da vida profissional com a vida familiar...
R. - E aí temos por exemplo o incentivo ao regime de trabalho a tempo parcial. Há um compromisso da senhora ministra das Finanças de aplicar esse regime na função pública, vamos ver quando é que se concretiza e como. Em Portugal este regime não tem sido muito utilizado, ao contrário do que acontece noutros países, não porque as mulheres não queiram, mas porque fazem contas e se os salários já são baixos, trabalhar metade do tempo significa receber metade do salário. Depois há sacrifícios que têm de se fazer: se eu valorizo a educação dos meus filhos e entendo que tenho de estar mais tempo em casa a acompanhá-los, tenho de fazer sacrifícios.

P. - E que mais?
R. - Pretende-se promover a reinserção profissional dos trabalhadores após terem vindo de licença de maternidade, parental ou de licença especial para assistência a filhos, apoiando a criação de módulos específicos de actualização profissional para esses trabalhadores. Acho que isto permitirá dar alguns passos, assim o orçamento o deixe.

O que a OCDE diz quando vê as nossas leis de conciliação é que são óptimas. O que temos são práticas muito dificultadas, porque não temos infra-estruturas, porque os patrões não são tão disponíveis quanto deveriam ser, porque devia haver creches mais próximas de casa... Tem de haver alternativas. Uma das medidas do plano é a de promover a formação credenciada de amas. Existem poucas, que eu saiba.


P. - Uma vez mais, não se diz quantas amas se querem formar até 2006, não se fazem quantificações? A crítica que se faz muitas vezes a este tipo de planos é não se definirem claramente metas.
R. - A palavra "compromisso" foi criada pelo conselho consultivo e tem, precisamente, a ver com isso. Fala-se sempre de "medidas". Achámos que compromisso é mais forte, compromete mais. Há neste plano algumas medidas muito genéricas, mas outras são muito concretas: como o compromisso de aprovar o regime jurídico da reforma parcial que permitirá que, a dada altura do processo da reforma, as pessoas possam escolher trabalhar em tempo parcial. Quando é que se faz? Tem de ser até 2006.

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