Público - 14 Abr 04

A Globalização
Por ÁLVARO DOMINGUES

Cá em casa pensava-se que a globalização era uma questão de decoração. Todas as lâmpadas e candeeiros de pé, de tecto e de mesa teriam de ser substituídos por globos porque essa seria a tendência internacional e nós não somos tão sobreembotados que não saibamos acompanhar o progresso, a modernidade e o cosmopolitismo. A moda.

Pobres de nós tão ignorantes que éramos, afinal. Então não é que a globalização era também a extensão dos mercados ao nível global? Não tem mal nenhum, para grandes males, grandes remédios pouco comparticipados. Substituímos os globos todos por outros, certificando-nos da sua proveniência internacional, embora com a consciência um bocado pesada por não estarmos a contribuir para o aumento da procura interna dos globos fabricados pela nossa celebrada indústria vidreira, apesar de os globos serem leves e não sabermos ao certo se a consciência pesada é redonda ou aos papos. Paciência. Os nossos globos seriam vendidos noutros países e a coisa ficaria ela por ela. A economia é mesmo assim e, afinal, nada como os globos que pela sua forma arredondada rolam muito mais rapidamente de uns sítios para outros. Assunto arrumado. Os transportes, perdão, a logística é hoje tão eficiente que é muito raro partir-se um globo por muito frágil que seja. Tem sido mais complicado com o transporte de crude, apesar do prestígio dos navios que o transportam, e com os imigrantes ilegais por viajarem em contentores e barcaças que se afundam para grande desgosto dos que os contratam para a construção civil e para os campos da Andaluzia e outros, com todos os incómodos derivados da teimosia dos ditos que em acabando as alfaces, os morangos e o betão teimam em não regressar à base porque não foi isso que os fez sair de lá. Chatice.

Assunto arrumado era o que parecia. Que difícil que está a ficar o mundo, agora que é preciso pensar global e agir local, como dizem. Afinal vai-se a ver e os globos mais populares, as bolas de futebol, são produzidas por uns desgraçados asiáticos, muitos deles crianças ainda e que recebem salários que cá nem dariam para comprar um gaipo de uva mijona. Que grandes progressos que farão esses países. Séculos de escravatura, de negreiros, de homens a apodrecer nos convés das galeras, para no fim se descobrir que é muito mais fácil pô-los a trabalhar nos países de origem. Aprende-se tão pouco com a História.

Que não. Lá estão os esquerdistas românticos a agitar o espantalho pensando que a finalidade da economia é o bem-estar das pessoas, umas mais que outras e muito menos são umas que as outras, respectivamente. Não é. Já o Adam Smith disse que era a riqueza das nações (ricas) e que entre isso e a economia do bem-estar teríamos de trucidar Marx, passar a Keynes e depois organizar as solenes exéquias do Estado providência para regressar ao ponto de partida e à lei da selva, a mesma onde dizem que a maioria dos grandes predadores está em risco de extinção, quem diria, havendo, no entanto, quem deles trate com supremas atenções, carinho e inseminação artificial, tudo em prol da biodiversidade e dos programas da Odisseia contra a matança das focas, muito pouco expressivas e gordurosas comedoras de bacalhau que falta na mesa dos pobres com hálito fétido, as focas. Muito complicado. Por muito menos, ainda não há muito que houve cá em casa muito choro e ranger de dentes por causa da morte gratuita das centopeias e de outros seres que habitam o ecossistema do rodapé e das traseiras dos móveis demasiado encostados à parede. Pois. E das aranhas, humildes seres fazedores de renda mas sem o mínimo sentido estético quando deslocadas dos filmes de terror.

Isto da globalização tem muito por onde se lhe desenvolvam assuntos os mais diversos. Agora é a globalização do terrorismo. Que curta memória e que enfezada que fica ainda mais quando passa na televisão. Quando o mundo era menos global, já os impérios andavam a alargar mundos e a aterrorizar os indígenas dos bocados de mundo novo para que o outro mundo prosperasse. A diferença agora é que não há mais mundo e a acomodação no que há vai fazendo cada vez mais faísca por má distribuição das cargas + e -, apesar de nos jurarem que o universo está em expansão, sendo embora difícil chegar aos mundos expandidos e muito mais ainda exportar para lá o excesso de electricidade estática deste que se vai contraindo, se a Física não me falha.

Oremos, entretanto. De início tudo parecia quase perfeito. Mal despontava a aurora, acocorava-se à beira do rio olhando o caminhar das águas. Sempre o mesmo murmúrio, doce, sempre aquele fluir sem sobressaltos, uma vez ou outra, um ramo, um remoinho de folhagem, uma súbita vibração e logo o regresso ao que antes era. Um espelho deslizante que crepitava quando a chuva caía em grossas bátegas ou que ficava da cor do céu nos dias límpidos reflectindo uma luz que vinha do fundo e permanecia uns instantes quando o fim da tarde trazia um manto de névoa que tudo escondia para que o ar se enchesse com a sinfonia das rãs. Adormecia então aconchegando a manta de sempre e os sonhos traziam novamente despojos dos dias à flor da água, a mesma paz, o mesmo tempo dentro de outro tempo.

Acordou com o roncar de uma retroescavadora. Ao lado, um grande cartaz com as casotas do costume: Companhia das Lezírias Resort and SPA, "a better place to live. Take your wilderness vacation and enjoy family fishing, canoe trips, bullfights, and honeymonn getaways. Make reservations on-line" http://www.portugal-em-accao.pt. Que mais nos irá acontecer. Amém.

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