Em dois milhões de pobres em
Portugal, há 200 mil pessoas que têm fome. Os números da pobreza,
aliás, têm-se mantido praticamente constantes desde a primeira
investigação sobre o tema.» (in Público, 21/3/2004). Esta
afirmação é do prof. Alfredo Bruto da Costa, presidente do Conselho
Económico e Social e um dos maiores especialistas nacionais em
estudos de pobreza. Esta avaliação, que vem de fonte segura, é mais
do que assustadora. É paradoxal.
Os números parecem contrariá-la, indicando uma redução acentuada da
pobreza nos últimos 20 anos. O mencionado estudo pioneiro, A
Pobreza em Portugal, de A. Bruto da Costa, Manuela Silva, J.
Pereirinha e Madalena Matos (Cáritas, 1985), com dados de
1980, estimava 35,5% das famílias portuguesas em pobreza absoluta,
englobando 40% da população (pág. 51). O Eurostat, organismo
estatístico europeu, que confirma os valores indicados de 20% de
pobres em Portugal hoje, apontava há 20 anos números bem acima de
30%. Mas devido às dificuldades neste tipo de estudos, os cálculos
são sempre enganadores, pelo que é mais prudente seguir a opinião
dos especialistas, como a referida.
O que torna insólita esta manutenção da pobreza é a evolução do País
no mesmo período. Portugal teve um crescimento espantoso nas últimas
décadas. O produto nacional é quase o dobro do que era em 1980. Como
a dimensão da população residente não se alterou, estamos em média
duas vezes mais ricos que há 20 anos. Como pôde então manter-se o
peso da pobreza?
Uma explicação é que, tal como Marx dizia e tantos repetem, o
crescimento económico seja empobrecedor e os ricos liguem menos aos
pobres. Mas será verdade? A desigualdade na distribuição de
rendimentos tem flutuado, subindo e descendo, mas não mostra uma
degradação estrutural. Muito mais significativo, o apoio aos pobres
aumentou muito.
Não é fácil medir a evolução da solidariedade privada e da
intervenção das IPSS. Mas nada indica aí uma quebra e há indícios de
melhoria. Por outro lado, as despesas sociais do Estado português,
que eram 16% das verbas estatais em 1980, são no austero orçamento
de 2004 mais de 39%. Como o total das despesas públicas explodiu no
intervalo, isso significa que os montantes sociais aumentaram 5,5
vezes em termos reais. A isto junta-se o quadruplicar das despesas
reais da Segurança Social, o outro organismo que lida com a pobreza.
Assim as verbas dedicadas ao problema são hoje muito maiores. Mas
estarão a ser entregues aos pobres? Também aí todas as informações
indicam progresso. Os mecanismos de combate à pobreza são hoje muito
mais sofisticados e eficazes. Quando em 1997 se criou o rendimento
«mínimo garantido», hoje «social de inserção», anunciou-se a
eliminação da «pobreza de caridade».
Dificilmente podemos dizer que Portugal esteja hoje mais insensível
aos pobres. Por outro lado, os indicadores sociais mostram ganhos
impressionantes no período. A taxa de mortalidade infantil, por
exemplo, que em 1980 era de 24 mortes por mil nascimentos, estava em
2002 já nos seis por mil, perto do nível da Europa.
Se o País está mais rico, vive melhor e gasta muito mais no combate
à pobreza, como é que esta teima em permanecer? O artigo citado
trazia também a excelente notícia que o trabalho pioneiro de 1985
vai ser repetido agora, 20 anos depois. Um dos temas mais
interessantes deste estudo será o desvendar deste mistério da
pobreza.