Diário de Notícias - 5 Abr 03
O bicho-homem
Vera Roquette
Caim matou Abel, seu irmão; conta o Génesis sobre as origens da humanidade.
Adão conheceu Eva, e ela concebeu e deu à luz Caim e também Abel. Caim
foi lavrador; e Abel, pastor. O trabalho de Abel foi
louvado pelo Senhor. Caim, transtornado pela inveja, mata
o irmão. Adiante numa outra passagem lê-se : «Matei um
homem porque me feriu, e um rapaz, porque me pisou.» A guerra está
em nós. A eterna «Louca» arrasa o coração do homem na a sua infame
ganância de poder. Ontem ainda, vivia-se o holocausto: as
câmaras de gás, o genocídio, o horror, a mortandade... o
pequeno e imenso diário de Anne Frank, onde ela escreve:
«Vejo o mundo transformar-se gradualmente numa selva.
Sinto que estamos cada vez mais próximos da destruição. Sofro com o
sofrimento de milhões...» Esquecemos tudo.
Vi há dias na CNN uma repórter como que açaimada (só se lhe via o cabelo
loiro) pela máscara negra de gás, estranha e patética que mal a deixava
falar e ver os olhos e a alma. A contrastar com a morte, havia atrás dela
um amanhecer sereno e etéreo. Vivemos como bichos
encarcerados. A guerra está em nós. Mata-se gente nas
cidades e deixam-se nas ruas, caídos, os agredidos.
Ninguém é por ninguém. O medo é vencedor. Lembro-me de há alguns
anos uma americana contar os assassinatos que se viam das janelas. Vivia
em Chicago. Primeiro eram os gritos das vítimas, o
acender das luzes, o espreitar das janelas. Mas, aos
poucos, as luzes iam-se dramaticamente apagando sob as
portadas. Cada qual no seu casulo, na sua fortaleza. Quando
estive em Nova Iorque, fiquei num hotel, num andar altíssimo que tinha
mesmo na frente um painel luminoso terrível. Assinalava
«ao segundo» os assassinatos nos Estados Unidos. De
arrepiar.
Caim matou Abel. E continua a matar todos os dias. Em várias guerras. No
vizinho que inveja um reles lugar de garagem; no filho que odeia o pai;
na criança que apedreja outra criança; no hediondo
traficante de crianças. Caim matou Abel. E há canhões que
disparam asfixiantes interrogações. Há também morte na
luz que se apaga na janela do prédio em frente. Guerra é vencer a
vida. Guerra é vencer a morte. É também o nascer de uma criança à qual
disparamos canhões.
Guerra é ignóbil humilhação. É espezinhar o morto espezinhado. É silêncio em
gritos de deserção. É garganta seca de poeiras e o extirpar das
entranhas. Guerra é um outro palco da vida. De dentes
cerrados num cenário putrefacto onde há tétrica
figuração. Fui ver O Pianista. Está lá tudo. Passa - se na
Polónia invadida. Tive uma tia polaca, que teve de fugir com uma criança
nos braços. O marido, general, foi levado de casa.
Conseguiu chegar a Portugal, à custa de umas jóias que
trazia escondidas num frasco de compota. Ouvi-a contar,
vezes sem conta, as mais atrozes humilhações.
O Papa clama paz. Sabe bem que a guerra é um punhal. Entre irmãos. Somos
novos Spartacus, enfeudados e inumanos. Matamos todos os dias. Veja-se o
epitáfio de Paul Valéry, escrito pelo próprio: «Aqui jaz Paul Valéry,
assassinado pelos outros.» As palavras também matam. Fuzilam. E de que
maneira!

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