Associação Família e Sociedade
- 31 Jan 06
ASSOCIAÇÃO
FAMÍLIA E SOCIEDADE
PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA
A
Associação Família e Sociedade é uma associação sem fins lucrativos,
que tem por objecto a persecução de acções humanitárias,
científicas e educacionais de apoio às famílias, bem como o
desenvolvimento do combate contra a discriminação entre sexos e a
luta pelos direitos das mulheres. Foi constituída por escritura
pública em Março de 2004.
Estando em
discussão, na Assembleia da República, 4 projectos de lei sobre a
Procriação Medicamente Assistida, e atendendo às questões que estas
matérias suscitam, a Associação Família e Sociedade não pode deixar
de reflectir sobre o tema procurando alertar para alguns aspectos
relevantes.
- Três dos
projectos de lei consideram a procriação medicamente assistida
como uma solução para os problemas de infertilidade que afectam
os casais e / ou as mulheres portuguesas (Exposição de motivos
do PL 141/X; PL 151/X; PL 172/IX). De facto, esta perspectiva é
errónea, uma vez que a fecundação in vitro não constitui
uma terapia para a infertilidade. Estas técnicas permitem
somente a “realização” de um filho em laboratório para esses
casais ou para essas mulheres. Mas a realidade da esterilidade
ou da infertilidade, bem como quaisquer problemas físicos a ela
associados, ou dela decorrentes, permanecem.
- Por outro
lado, se é uma realidade dolorosa que muitos dos casais e das
mulheres com problemas de infertilidade, experimentam
sofrimento, tão-pouco se pode ignorar que as técnicas de
fecundação in vitro acarretam uma pesada carga emocional para os
casais envolvidos, bem como numerosas incomodidades físicas.
Estes inconvenientes ganham grande relevância nos casos de
fecundação heteróloga (consentida no artigo 10º do PL 141/X e
nos artigos 9º e 17º do PL 172/X)– em que a criança gerada só é
filha de um dos membros do casal -, e quando há recurso a mães
de aluguer(situação contemplada no artigo 26º do PL 172/X e no
artigo 6º do PL 151/IX) . Relativamente ao projecto de lei
apresentado pelo Partido Socialista, é necessário referir que o
recurso a mães de substituição é legislado de forma vaga, pois
se no nº 2 restringe a sua existência à apreciação do CNRMA,
sem, no entanto, definir quais os critérios legais para admissão
desse recurso, no nº4 do mesmo artigo considera que fora das
situações previstas no nº2, a mãe de substituição é havida para
efeitos legais como mãe da criança. Esta ambiguidade é tanto
mais grave, quanto a experiência da utilização de mães de
substituição noutros países tem estado na origem de numerosos e
difíceis processos em tribunal.
- As técnicas de
procriação medicamente assistida trazem graves prejuízos para a
maior parte das mulheres que a elas se submetem, nomeadamente
devido à hiperestimulação hormonal a que são sujeitas.
Habitualmente apenas se apresentam os casos de casais que
conseguiram ter um filho, mas são mais numerosas as situações em
que a saúde física e psíquica da mulher fica abalada, sem obter
os resultados desejados. Por outro lado, também existem ainda
muitas dúvidas quanto aos efeitos que essa hiperestimulação pode
acarretar, a longo prazo, para as crianças nascidas através
destas técnicas.
- Relativamente
ao problema da infertilidade, convém igualmente recordar que na
jurisprudência das sociedades ocidentais prevalece sempre o
interesse do menor relativamente ao interesse dos seus
progenitores. Assim, no que respeita ao direito de adopção, o
princípio vigente é o direito do menor a crescer numa família e
a ser amado, e nunca o direito a ter um filho por parte de um
determinado casal, ou de uma mulher, tal como é proposto em
alguns destes projectos (artigo 4º, nº 2 do PL 141/X; artigo 2º,
nº 2 do PL 152/X).
- Coloca-se aqui
a questão se o embrião humano é sujeito de direitos ou não.
Neste ponto pedimos que seja tida em conta a posição do
Professor Daniel Serrão, autor do Livro Branco sobre os embriões
humanos.
Invocando o artigo 2º da Convenção dos Direitos do Homem e da
Biomedicina do Conselho da Europa - “o interesse e o bem-estar
do ser humano devem prevalecer sobre o interesse único da
sociedade ou da ciência” -, este autor interpreta o artigo 18º
da mesma Convenção, em que se diz que a lei deve proteger
adequadamente o embrião sempre que seja autorizado a usá-lo em
investigação, como um reconhecimento implícito de que o embrião
deve ser respeitado na sua dignidade de ser humano.
- Os dados da
embriologia permitem afirmar que em cada embrião existe um
indivíduo da espécie humana desde a fecundação, pois possui
quatro características fundamentais:
·
novidade biológica – os núcleos das células
germinais, ao fundirem-se, dão origem a algo de novo e original, um
património genético, único e irrepetível, que nunca exixtiu antes,
nem existirá depois;
·
unidade – possui um centro organizador das
várias partes que o formam, que é o genoma, encarregue de coordenar,
harmonicamente, as fases da evolução dessa nova vida;
·
continuidade – não existe nenhum salto
qualitativo desde a fecundação até à morte, pois todo o seu
desenvolvimento está previsto no genoma, presente no embrião;
·
autonomia – sob o ponto de vista biológico,
todo o desenvolvimento se processa, desde o início, de forma
autónoma, uma vez que a informação para dirigir esses processos vem
do próprio embrião, do seu genoma; o “diálogo químico” que se
estabelece entre o embrião e a mãe é desencadeado pelo embrião, pois
é ele quem pede ao organismo materno aquilo de que necessita.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, no seu
Relatório sobre a Procriação Medicamente Assistida,
adverte que o estatuto pessoal do embrião pertence ao âmbito da
filosofia, e não da biologia: “Não é porque o biólogo não pode
discernir, visivelmente, uma nova pessoa nas células embrionárias,
que esta nova pessoa não está presente. A pessoa humana escapa ao
olhar do microscópio”.
- Outro dado
pertinente nas fecundações in vitro é a “perda de
embriões”, ou seja, de vidas humanas, ainda que numa fase
muito incipiente. De facto, cerca de 96% a 99% dos embriões
produzidos são posteriormente destruídos. Para se conseguir uma
só gravidez torna-se necessário utilizar um elevado número de
embriões, uma vez que as taxas de sucesso ainda são reduzidas,
como é reconhecido em todos os projectos de lei. De acordo com
um relatório recente da HFEA (Human Fertilisation and Embryology
Authority) do Reino Unido, são necessários 19 embriões para se
conseguir um nascimento. Sacrificam-se 18 vidas humanas para que
nasça uma só.
- Os embriões
excedentários destes processos de fecundação são um dos maiores
incovenientes da procriação medicamente assistida. Para minorar
este problema recorre-se, por um lado à crioconservação
(permitida e aconselhada em artigos 13º, nº1 do PL 141/X;
21º,nº 1 do PL 151/IX; 23º, nº1 do PL 172/X; 15º do PL 176/X) e,
por outro, aumenta-se a investigação básica nesses mesmos
embriões (consentida apenas nos embriões excedentáriosnos atigos
7º , nº1 do Pl 151/IX e 7º, nº 2 e nº 3 do Pl 172/X). Em todas
estas situações os embriões são tratados como mero material
biológico, sacrificados em prol da ciência ou dos desejos dos
seus progenitores. Curiosamente, apenas dois projectos de lei
(artigo 11º, nº 1 do PL 176/X e artigo 7º, nº 3 do PL 151/IX)
proíbem expressamente a criação de embriões para uso em
investigação. Mas a omissão de legislação neste campo que se
verifica nos restantes projectos é, ela mesma, perigosa e
irresponsável, pois alguns sectores da ciência têm reclamado
insitentemente por autorizações legais para numerosas formas de
manipulação genética. A própria técnica da congelação não está
isenta de críticas por falta de respeito à dignidade do embrião,
uma vez que se expõem esses embriões a riscos de morte ou de
dano. Muito se tem discutido sobre o destino a dar aos embriões
excedentários, sem que alguém consiga propôr uma solução
eticamente aceitável. Todas as soluções encontradas têm sido
consideradas, desde o ponto de vista ético, como um mal menor.
Assim, a Associação defende que não devem ser aplicadas técnicas
que acarretam sempre uma consequência negativa, ainda que se
persiga um fim bom.
- Nas técnicas
de procriação em laboratório, os seres humanos gerados vêem-se
privados, ainda que temporariamente, de um acolhimento no seio
materno, tal como já foram privados do acto de amor intrínseco à
união corporal que é a origem da procriação natural. Este facto
é considerado por muitos filósofos, antropólogos e juristas como
uma injustiça, ao violar o princípio da igualdade. Alguns dos
projectos de lei apresentados no Parlamento português
acrescentam a negação do direito a conhecer a paternidade e a
maternidade biológicas (artigo 9º, nº 2 e 4 do PL 141/X; artigo
12º, nº1 do PL 151/IX; artigo 14º, nº 2 e 3 do PL 172/X),
abrindo apenas excepções para “razões ponderosas”, dependentes
de autorização da Comissão Nacional para a Procriação
Medicamente Assistida.
- O recurso ao
diagnóstico pré-implantatório, contemplado em todos os projectos
de lei (artigo 14º do PL 141/X; artigo 7º, nº 3 do PL 151/IX;
artigo 27º do PL 172/X; o projecto de lei 176/X é omisso nesta
matéria, mas como apenas prevê de prisão para quem “destruir
embrião humano viável” – artigo 29º -, pode presumir-se que um
diagnóstico prévio e destruição dos embriões inviáveis sejam
lícitos ), permite a selecção de embriões antes de os transferir
para o útero. O diagnóstico pré-implantatório, nos países onde é
praticado, levanta alguns problemas. Em primeiro lugar, o
diagnóstico pré-implantatório fomenta claramente o eugenismo,
pois só permite a sobrevivência, por selecção voluntária, dos
embriões saudáveis. Para este risco têm alertado também os
pareceres e relatórios do CNEV.
O eugenismo aparece de forma mais evidente no artigo 27º, nº 3
do PL 172/X, que diz que “o diagnóstico pré-implantatório deve
ser seguido de diagnóstico pré-natal”. Em segundo lugar, o
diagnóstico pré-implantatório é multidisciplinar, requerendo a
coordenação de peritos em medicina reprodutiva, embriologia,
biologia molecular e genética clínica. A maior parte dos centros
clínicos onde se realizam fecundações in vitro não estão
devidamente preparadas para realizar uma tarefa tão delicada.
Assim, calcula-se que este processo de diagnóstico esteja ainda
bastante propenso a erros, o que significa que podem ser
destruídos muitos embriões saudáveis. Por último, tem um elevado
custo, pelo que não costuma aparecer como um procedimento
prioritário nos cuidados de saúde.
- A baixa
eficácia destas técnicas de reprodução e o seu alto custo, tanto
económico como humano, permite-nos questionar se esta deve ser
uma das prioridade do Serviço Nacional de Saúde no nosso país.
Quando se encerram maternidades no interior do país por falta de
sustentabilidade financeira; quando o interminável problema das
listas de espera deixa tantos cidadãos sem a possibilidade de
realizar cirurgias e tratamentos do foro oncológico, e outros
necessários à manutenção de funções essenciais, como por
exemplo, a visão ou a audição, cabe perguntar se é prudente o
Serviço Nacional de Saúde assumir mais este ônus (artigo16º, nº2
do PL 172/X; artigo 4º, nºs 1, 3, e 4 do PL 141/X). Para mais,
muitas das gravidezes trazem um elevado encargo financeiro,
devido a complicações e partos gemelares.
O facto de não existir um consenso sobre o estatuto pessoal do
embrião, implica que se legisle com muita prudência em relação à sua
criação e posterior uso ou manipulação. Ninguém pode afirmar, com
uma certeza categórica, que o embrião não tem dignidade
pessoal.Algumas correntes de pensamento ético defendem que o embrião
não tem os mesmos direitos de qualquer outro ser humano. Contudo,
nenhuma destas teorias se conseguiu impôr como válida. Ainda que se
aceitasse o gozo restrito de direitos por parte do embrião, ficaria
por demonstrar em que ponto é que o ser humano passa a ter um pleno
gozo de direitos. Em caso de dúvida, deve considerar-se que estamos
perante um ser humano em tudo igual aos restantes, e impedir que
haja uma violação da sua dignidade.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Emanuel Kant afirma que o termo “dignidade” se refere àquelas
realidades que, pelo seu valor intrínseco e singular, não admitem
equivalentes, não podendo, por isso, ser substituídas por outras
realidades análogas. São superiores a qualquer valorização volátil
ou mercantil. As coisas, sem dignidade e que podem ser substuídas,
podem ser compradas, pois têm um preço. A descoberta do genoma
humano veio demonstrar que cada nova vida humana é única e
irrepetível.
Na essência da democracia encontra-se a vontade firme de respeitar
todo o ser humano sem distinção de raça, sexo, situação económica,
idade, religião, etc. A democracia acredita que existe uma dignidade
equivalente para todos os homens e mulheres e têm, por isso mesmo,
um direito primordial e inviolável à vida.
Neste sentido, a Associação Família e Sociedade apela ao Parlamento
português para que:
·
aproveite esta oportunidade para legislar reconhecendo
aos embriões os direitos que lhes assistem. Não proceder deste modo
é criar uma clivagem entre seres humanos de primeira e de segunda
categoria: os que têm direito a viver e a decidir, e aqueles que
podem ser manipulados e eliminados em benefício de outros. Este
princípio pode começar por se aplicar a uns minúsculos embriões
indefesos, mas rapidamente será extrapolado para outras vidas
humanas indesejadas.
·
promova o estudo e desenvolvimento das técnicas para
tratamento da infertilidade, o que permitiria aos casais a resolução
do seu problema de uma forma definitiva. Assim teriam a
possibilidade não só de ter “o filho”, mas os filhos que desejassem.
Lisboa, Janeiro de 2006
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